Aos 44 anos, e depois de um concurso internacional, a bióloga foi selecionada para dirigir o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras, sucedendo ao britânico Jonathan Howard, no próximo mês de fevereiro. A par de um percurso científico de destaque – com publicações nas principais revistas científicas e dois financiamentos do Conselho Europeu de Investigação (as milionárias bolsas ERC) – Mónica Bettencourt-Dias esteve, desde cedo, envolvida na divulgação de ciência, chegando mesmo a estudar comunicação, em Inglaterra. Para ela, tão importante como descobrir, é partilhar o prazer da descoberta com a comunidade. No mundo científico, é conhecida pelo seu trabalho em torno dos centrossomas, estruturas que fazem parte das células, envolvidas no processo de divisão celular, e que podem ter implicações em questões tão fundamentais como a infertilidade ou o cancro. Fazendo parte de uma geração de ouro da ciência portuguesa e otimista por natureza, assume, no entanto, uma grande preocupação pela instabilidade dos processos de financiamento, que ameaçam comprometer o terreno já conquistado.
O facto de, pela primeira vez, uma instituição como o IGC estar prestes a ser dirigido por uma mulher tem alguma relevância?
Tem um significado especial porque no mundo há poucas mulheres em posições de liderança, também na ciência. Apesar de haver alguns exemplos em Portugal – o Instituto de Medicina Molecular ou a Fundação Champalimaud – , ainda são poucos. E é importante que existam, para que outras mulheres saibam que é possível atingir cargos de liderança.
Porque é que isso não acontece mais?
Se quisermos ter mais mulheres – e devíamos ter – porque temos excelentes cientistas, devemos fazer algum coaching, para que estas não temam avançar. Além disso, falta apoio, como acontece noutras organizações, para conciliar a carreira com a vida familiar. Através do pagamento de babysitters, para que as mulheres com filhos possam ir a conferências, por exemplo. Ou com salários mais altos quando a mulher, ou o homem, tem filhos.
Há características que se associam mais aos homens e outras mais às mulheres. Que contributo dará uma mulher à frente de uma instituição científica?
Há obviamente diferenças entre um homem e uma mulher, mas ainda não é claro o quanto e o que se pode dizer cientificamente sobre diferenças no comportamento.
Como assim?
Hoje em dia começam a surgir vários estudos que olham para as diferenças nos genes e na sua atividade. O genoma de um homem é 99,9% idêntico ao de outro homem. Já um homem e uma mulher são idênticos em 98,5% (esta diferença deve-se ao cromossoma Y que só os homens têm). Entre o genoma de um homem e o de um chimpanzé há 98,5% de equivalência. Os números são impressionantes! O curioso é que isto significa que as células das mulheres são potencialmente bastante diferentes das dos homens, explicando em parte porque é que somos suscetíveis a muitas doenças diversas (para além dos traços sexuais). Esta é uma área que começa a ser muito explorada ao nível da medicina personalizada.
Fala-se muito do contributo masculino e do contributo feminino. Nas equipas de astronautas, por exemplo, é essencial.
Sim, claro. A diversidade traz sempre riqueza. No meu laboratório tento ter uma equipa de origens e géneros diferentes. Mas não sei o que já está provado. Não sei se é completamente verdade dizer-se, por exemplo, que a liderança de uma mulher favorece a preocupação com os outros.
O que atrai os alunos estrangeiros para o doutoramento da Gulbenkian?
A maior parte dos estudantes que vêm para cá – e temos estudantes de muitos países diferentes, da Nigéria, Síria, México, Croácia, Índia… – procuram independência de pensamento. Porque podem escolher o tema, o orientador. Sentem uma grande liberdade.
Faz investigação que, no futuro, pode ter aplicação na área do cancro. De que forma?
Tento perceber como funcionam as células, os tijolos que formam o nosso corpo. Na minha equipa, trabalhamos com estruturas envolvidas na comunicação, multiplicação e movimento celular. Estruturas que estão modificadas em doenças como o cancro. Percebendo como é que estão alteradas e que características transmitem às células cancerosas, podemos usar isso, quer para detetar a doença, quer para a tratar, aproveitando o facto de estas células terem determinada alteração que as normais não têm. Porque um dos problemas de tratar o cancro é precisamente direcionar o tratamento de forma a que este atinja apenas as células doentes.
Tem estado sempre confortável em termos de financiamento, com duas bolsas ERC. Mas esta não é a regra. Porque os investigadores não são suficientemente bons ou porque há falhas no sistema?
Quando decidi voltar a Portugal, há 11 anos, podia ter ido para outros sítios. Uma situação igual à de muitos outros colegas, que optaram por regressar. Voltámos porque havia investimento e entusiasmo. Havia bastante financiamento, apesar de com uma certa irregularidade. Foi o trabalho do António Coutinho, na altura à frente da Gulbenkian, e este financiamento que me permitiram atingir um patamar que serviu de lançamento para concorrer às ERC. Neste momento, a situação é diferente. A taxa de aprovação de projetos baixou: de cerca de 30 para 13% e a irregularidade no financiamento agravou-se. Não podemos viver só de financiamento europeu, nenhum país vive exclusivamente disso. É preciso, primeiro, garantir o dia a dia. Até porque só assim se consegue atrair investigadores de outros países, que podem eles próprios trazer projetos europeus para Portugal. Aliás, quando cheguei sentia-me muito à vontade para convidar outros investigadores a virem trabalhar para cá.
Já não consegue dizer o mesmo?
Neste momento está muito mais difícil. Não gosto de ser pessimista, mas tenho de dizer que, quando olho à minha volta, o que vejo é uma maior dificuldade em atrair pessoas de fora e até em manter as que cá estão. Quer pela irregularidade do financiamento quer pela falta de perspetiva e incerteza ao nível da carreira.
Há pessoas da sua geração que regressaram a Portugal e que agora pensam ir novamente para fora?
Sim.
Parece haver um clima de deceção, depois de um período de uma certa euforia.
Os cientistas são por natureza otimistas. Estamos habituados a resolver problemas. Mas precisamos de sentir que, se formos bons, temos financiamento. Quando concorri à última ERC, era o último ano em que podia concorrer e, se não a tivesse recebido, teria de ir para o estrangeiro. E isto é muito angustiante. Sentir que não há alternativa no País.
O que está a correr mal?
O que tem acontecido, em Portugal, é que de cada vez que muda o Governo, muda a direção da Fundação para a Ciência e Tecnologia [FCT, o organismo que coordena o financiamento governamental]. O grande problema é que nenhum governo, até agora, tornou a FCT independente. É uma recomendação antiga da comunidade científica. Mudar isso é essencial para termos uma política a longo prazo para a ciência. Devia ser um cavalo de batalha.
Além da responsabilidade governamental, também há uma falta de envolvimento da sociedade.
Quanto a isso estou muito positiva porque as novas gerações de cientistas estão muito mais envolvidas na comunicação de ciência do que acontecia no passado.
É essa uma das apostas?
Sim, sem dúvida. Por várias razões. Uma delas tem a ver com os valores do processo científico: a comunicação, a transparência, a tolerância. A transmissão do espírito crítico (não achar que, por agora estar frio nos Estados Unidos, não há aquecimento global) é muito importante. Além de melhorar a vida das pessoas. Precisamos de mostrar à sociedade que a ciência funciona.
Apesar das dificuldade, a ciência portuguesa já é reconhecida lá fora…
Podemos ver isso ao olhar para o número de bolsas ERC. É gratificante verificar que já temos financiamento europeu em várias áreas. Das ciências da Biologia, uma área que me está mais próxima, mas também na Sociologia, Física e noutras.
Já estamos no mapa, então.
Portugal já está no mapa da investigação. Lá fora, há sempre alguém que conhece um investigador português. Mas ainda precisamos que este ponto no mapa se transforme numa bola, bem visível. Há um indiano que está a trabalhar comigo e me contou que, quando veio para cá, porque queria trabalhar comigo, várias pessoas na Índia o aconselharam a ir para Harvard ou Cambridge. Ainda não temos a mesma capacidade que tem Cambridge de atrair empresas. Lá há tanta massa crítica que toda a gente quer estar. Devíamos ambicionar ser um ponto bem grande no mapa. Não é para aí que estamos a ir, por causa da irregularidade do financiamento. Mas temos as pessoas e a vontade.
Devíamos ter uma estratégia que passa pela aposta numa área específica?
A questão da área é importante e difícil de responder. Podemos perder oportunidades ao concentrar tudo numa área. Pontualmente pode haver áreas em que faz sentido investir mais. No IGC, por exemplo, a dada altura tivemos um programa em Biologia Computacional, uma área essencial (por causa do tratamento de dados). Outra área essencial ao progresso da Medicina é a investigação clínica. Também tivemos, juntamente com a Fundação Champalimaud, um programa de doutoramento só para médicos. Pensando no futuro, faz sentido apostar no estudo da forma como o conhecimento que temos da Biologia e de nós próprios pode afetar o nosso comportamento em sociedade. Por exemplo, como a neurobiologia pode afetar a maneira como ensinamos as crianças ou tomamos decisões. Já devemos estar numa altura em que faz sentido apostar na ligação entre as ciências ditas naturais e as sociais.
Conhece cientistas desempregados?
Neste momento não. O que há é incerteza quanto aos contratos. A questão do emprego científico é crucial e a falta de regularidade é muito grave.
O que pode fazer um cientista desempregado?
Pode fazer muitas coisas. A valência da ciência é que ensina a resolver problemas. Gostaria imenso que houvesse cientistas no Parlamento, nos hospitais, nos media.
Estes setores estão recetivos a receber cientistas?
É preciso que haja mais interação entre os diversos setores e o Governo pode ter um papel na promoção destas ligações. Cientistas em estágio no Parlamento, num jornal… Seria útil a vários setores da sociedade. Nem todas as pessoas que fazem um doutoramento têm de ser cientistas. Podem ter outra atividade. Fala-se pouco da carreira das pessoas que apoiam a investigação. O mundo da investigação é muito mais rico. Há os técnicos, as pessoas que coordenam as bolsas a que concorremos, que fazem comunicação, gerem os microscópios. Estas pessoas são críticas à investigação e a carreira deles tem sido muito pouco discutida. É preciso que haja uma estratégia, que inclua também estes profissionais, pensar na ciência como um todo. Para onde queremos ir e como.
(Entrevista publicada na VISÃO 1298 de 18 de janeiro)