Quando escolhemos uma garrafa de vinho, por norma temos em conta uma série de variáveis, mesmo que inconscientemente: qual a ocasião, qual a ementa, quem a vai partilhar connosco e o que queremos mostrar com a nossa escolha. Há amigos que queremos impressionar, e aí apostamos pelo seguro; outros com quem gostamos de experimentar as referências mais desconhecidas. Há alturas em que queremos harmonizar perfeitamente o vinho com a refeição que escolhemos, outras em que gostamos tanto de uma garrafa que a bebemos com o que for. E está sempre tudo bem, seja qual for a escolha – e o resultado de cada experiência. É neste equilíbrio, acredito, que está a magia deste mundo tão complexo e cheio de oportunidades como é o da enofilia.
A equipa da EXAME encontra-se, algumas vezes, durante o ano, para jantar – é algo que apreciamos fazer, partilhar a mesa sem ter a revista como tema de conversa. Aproveito essas alturas para ir à garrafeira selecionar uma série de referências que tenho de provar, e assim partilhar com o resto dos meus colegas o resultado das minhas escolhas (e de algumas descobertas). A parte divertida disto é que cada um deles gosta de perfis de vinhos tão diferentes que, para o comum dos mortais, as garrafas que geralmente se juntam à mesa parecem não fazer qualquer sentido. São momentos para testar, também, se as preferências de cada um se alteraram com o tempo e com isso ter interessantes discussões sobre o que cada um valoriza.
Os dois vinhos que lhe trago este mês fizeram parte de jantares da EXAME, em diferentes ocasiões. E, sem surpresas, revelaram algo que ando a tentar provar, ainda que de forma totalmente empírica – que é como quem diz, apenas através das minhas notas: que são, muitas vezes, os vinhos mais despretensiosos que ganham protagonismo quando estamos descontraídos o suficiente para arriscar nas referências que, por impulso, poucos escolheriam. E que são precisamente estes que arriscam colocar Portugal no mapa do que de melhor se faz no mundo.
De um lado, temos o Grandes Quintas Reserva de 2020 – que só tive pena de levar para a mesa porque é, claramente, um vinho que estará no seu apogeu daqui a mais uns 5 ou 7 anos. Com imenso potencial de guarda, é um tinto descomplicado de beber, com uma complexidade elegante e polida. Produzido a partir de castas autóctones das quintas da Casa d’Arrochella, é um daqueles vinhos que podia estar a ser vendido por um valor muito superior ao que cobram por ele, atualmente, sem ser excessivo. Uma característica comum a várias referências que têm a mão de Luís Soares Duarte, um dos enólogos nacionais mais discretos, mas cujos vinhos ocupam bem o lugar que ele faz questão de deixar vazio no espaço público.
Do outro, temos mais um vinho dos terrenos de Augusto de Freitas de Sousa e Maria João Babo, dois jornalistas que dedicam parte do seu tempo a recuperar património da família, em Amarante. Com a ajuda de Jorge Sousa Pinto, o irreverente enólogo que desde a faculdade foi apontado como um dos mais promissores em Portugal, deram voz a vinhas velhas que estiveram mais de 100 anos sem que as suas uvas fossem usadas para vinhos.
Escrevi aqui, no ano passado, sobre o “Número Zero” que, à semelhança do que faziam os jornais quando eram lançados, serviu de prova de conceito para este 100% Azal. Este ano, o Cem anos de Silêncio chega-nos mais consistente, e com a certeza do lugar que quer ocupar no mercado. As produções continuam a ser pequenas – cerca de duas mil garrafas – e artesanais. Quando Augusto e Maria João não estão a escrever, estão a colocar rótulos nas garrafas. E é esta simplicidade que torna este vinho tão especial.