No meio da conversa, veio à baila o assunto daquela semana: a proposta de reposição das subvenções vitalícias para os políticos, defendida pelo PSD e pelo PS -e que acabaria por cair pelas mãos desses mesmos partidos, com focos de contestação interna à medida. “Em nome do bom senso”, como assim explicou a bancada dos sociais-democratas, a proposta não chegou a ser votada pelo Parlamento. “Não podemos admitir que se equacione repor pensões vitalícias a deputados ao mesmo tempo que nem se duvida em cortar pensões e rendimentos aos trabalhadores”, foram as palavras, na altura, da deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua.
Ana Quintela, fundadora e sócia gerente de uma empresa de consultoria nas áreas de geotecnia e estruturas, a Tetraplano Engenharia, falava à EXAME sobre a necessidade de as organizações se pautarem internamente pelos mesmos valores que comunicam ao mercado.
“Como empresa de engenharia que somos, as nossas máximas são: rigor, exigência, planeamento, mas também frontalidade, compreensão e apreço pelos nossos trabalhadores. Queremos que essa seja a nossa imagem de marca no exterior, mas tento todos os dias que esse também seja o dia a dia de trabalho no Tetraplano. Entendo que é fundamental existir confiança dentro da empresa. Entendo, por exemplo, que toda a gente que aqui trabalha deve estar informada sobre a performance financeira da empresa, e, por isso, este ano instituímos um momento mensal de reunião em que esses dados são passados”, explicava a engenheira civil, quando, por acaso, a conversa foi dar ao tema das subvenções políticas. “Temos lideranças que poucas vezes sabem colocar-se no lugar dos outros, que poucas vezes dão o exemplo. A questão da reposição das subvenções políticas, por exemplo, quando se pedem tantos sacrifícios à população… Ainda hoje estava a comentar isso com uma colega. Numa altura em que não havia dinheiro por causa da cisão que ocorreu no seio da empresa [em 2006, quando a área de arquitetura saiu da companhia], nós, equipa de gestão e sócios da empresa, não recebemos salário. Não sei se isso acontece muitas vezes. Mas se exigimos, também temos de dar”, explica Ana Quintela, sócia gerente de uma empresa com cerca de 20 trabalhadores, que trabalha em projetos em Portugal e noutros países, como Angola e Brasil. Integra, desde 2008, o Grupo Coba e anualmente fatura cerca de 900 mil euros. “Já chegámos a faturar, 1,3 milhões de euros, mas este é um setor que tem sofrido muito com esta crise. Daí a necessidade ainda maior de reforçar a confiança dentro da empresa”, reforça.
A crise financeira que descambou já há seis anos deixou a descoberto organizações feridas no seu caráter e com lacunas de valores, a começar pelos bancos. E no longo calvário que se seguiu, e que permanece, há feridas que teimam em não sarar, empresas que continuam a não aprender com os erros (os seus e os dos outros). Portugal, nos últimos meses, assistiu à queda de duas das mais emblemáticas corporações nacionais, que, a determinado momento, fizeram más escolhas: o Grupo Espírito Santo (GES), que se desfez depois da onda de escândalos que abalou a reputação da família que o liderou durante mais de 140 anos, e a Portugal Telecom SGPS (também por via do contágio do GES, ao comprar 897 milhões de euros de papel comercial da Rioforte, o braço não financeiro do GES), que em poucos meses perdeu o estatuto de ser um dos maiores grupos nacionais -depois da fusão com a brasileira Oi, sob a premissa de gerar um grande grupo de telecomunicações de língua portuguesa, a PT Portugal, onde está concentrada a atividade operacional da empresa portuguesa, acabou vendida por 7,4 mil milhões de euros à francesa Altice. Ricardo Salgado e Zeinal Bava, os dois rostos executivos à frente destes grupos, saíram pela porta pequena, depois de serem aclamados pelos seus perfis de liderança e de gestão anos a fio. Dois líderes que sempre granjearam grande reputação no mercado, à frente de duas empresas que, para o mercado, transmitiam valores como transparência, inovação, foco nos clientes e nos acionistas, respeito pelos stakeholders, integridade, entre outros. Contudo, internamente nem sempre se pautaram por estes ideais.
Velhos valores, novos comportamentos
Para perceber como é que os valores podem estar no centro da estratégia de gestão das empresas, a EXAME falou com duas consultoras que estão a trabalhar o tema dentro das organizações portuguesas. “Ao longo dos nossos anos de trabalho, temos tido experiências com variadíssimas empresas. E nas revisões que fazemos frequentemente à nossa estratégia e forma de estar na vida profissional começámos a questionar o que aconteceu ao longo destes últimos anos. Que loucura é esta? Como é que conseguimos destruir valor tão rapidamente nas nossas empresas, na nossa sociedade? Chegámos à conclusão de que não basta hoje às organizações construírem e publicarem códigos de ética e terem preocupações formais. Instalou–se uma crise de confiança dentro das empresas em relação a tudo: desconfia-se da empresa, dos chefes, dos colegas, de nós próprios”, explica Isabel de Melo, consultora independente que, juntamente com Paula Borges (diretora-geral da consultora Jiminy), implementa nas empresas clientes um modelo de gestão por valores (ver infografia nas páginas seguintes). Em plena crise económica, estamos a passar por uma crise de valores, sem fim à vista: “O que vemos cada vez mais é que o espaço de interceção entre os valores individuais dos trabalhadores e os valores das organizações é cada vez menor. E isso provoca imensa desmotivação”, continua a consultora.
“Sabemos, até porque psicólogos já estudaram o tema, que a motivação está diretamente ligada ao exercício de determinados valores dentro de uma estrutura, neste caso uma empresa. As pessoas ganham o mesmo dinheiro (ou menos, por culpa dos impostos da austeridade), mas não sentem a mesma energia e alegria no trabalho, ou seja, estão menos motivadas exatamente com as mesmas condições salariais. O que faz a diferença? Muitas vezes prende-se com a forma como vemos os nossos líderes e a confiança que temos neles, ou não. Ou seja, com os valores que vigoram dentro de uma organização”, acrescenta Paula Borges.
A confiança está “a montante” da motivação e dela depende a produtividade. Trabalhadores confiantes nas suas organizações são mais eficazes e focados nos resultados. E os líderes têm de estar atentos. Sobretudo, comprometidos. “É por isso que fazemos sempre uma provocação inicial: se um líder não partilha desta crença, não vale a pena investir tempo e dinheiro numa abordagem de gestão por valores. Porque o que temos visto é que há muitas organizações que entram em programas de coaching, de teambuilding, de transformação, entre tantos outros, só para dizerem que o fizeram”, defende Isabel de Melo. Para estas consultoras é preciso trabalhar a níveis mais profundos, já que não se cria confiança se se trabalhar apenas os comportamentos. “É preciso, primeiro, ajustar ou mudar os valores que vigoram na empresa, para influenciar as crenças que existem no seu seio e, dessa forma, ter impacto no comportamento de todos. Quando acreditamos, mudamos os comportamentos. Para trabalhar a mudança, temos de trabalhar os valores”, garante Paula Borges.
É por isso que os líderes “não podem dizer uma coisa e fazer outra”, asseveram as consultoras, inspiradas pela teoria do norte-americano Richard Barrett (especialista em recursos humanos e na evolução dos valores humanos nas organizações), a base do seu trabalho (ver gráfico das páginas anteriores). Barrett acredita que quando um líder ou empregado trabalha ao nível da sobrevivência, apenas para garantir as necessidades básicas, a rentabilidade ou o salário, consoante o caso, não se operam verdadeiras transformações. Estas também não acontecem quando trabalhamos para alimentar a nossa autoestima, o nosso ego: a verdadeira transformação acontece quando o líder e o trabalhador estão ao serviço dos outros.
“No fundo, de forma muito simples, dentro das organizações não devemos fazer aos outros o que não queremos que nos façam a nós. Embora não seja católica, acredito profundamente nisto. Por mais básico que seja, é a esta crença que a sociedade e as organizações se devem agarrar. Uma empresa não deve espremer os seus fornecedores, por exemplo. Até porque precisa deles. Quando os líderes não têm uma atitude de serviço aos outros, o seu sucesso e o das suas empresas é a prazo”, reconhece Isabel de Melo.
É nestes pressupostos e instrumentos “básicos” que assenta o trabalho das duas consultoras. “Não inventámos nada, não trazemos nada de revolucionário. Juntámos uma série de instrumentos que, do ponto de vista da gestão, fazem sentido e que alinham a parte racional com a parte emocional, que existem em todas as empresas”, explicam.
Questionamento constante
A metodologia do programa criado por Isabel de Melo e Paula Borges bebe em vários autores e utiliza as ferramentas mais variadas, aplicadas de acordo com as cinco etapas que compõem o processo. O caminho vai sendo percorrido através do constante questionamento. “Como ponto de partida, faz sentido compreendermos o propósito da equipa onde estamos inseridos, ou seja, do sistema humano do qual fazemos parte. Só depois devemos analisar o nosso papel enquanto elementos daquela determinada equipa. O que percebemos é que, muitas vezes, as metodologias começam pelo ‘eu’, não vão mais atrás. Focam-se, assim, mais nas questões do ego do que no propósito da equipa, que é o que deve, em nossa opinião, ser o ponto de partida”, avança Isabel de Melo.
Depois, há que trabalhar a conexão entre os objetivos pessoais de quem faz parte de uma equipa de trabalho e os objetivos dessa organização, perceber como podem estar alinhados sem prejuízo de ninguém. Já o quarto passo tem a ver simplesmente com “ser coerente nas questões do dia a dia. Não se pode dizer uma coisa no discurso bonito de comemoração do aniversário de uma empresa e, no dia seguinte, agir como se nada fosse. Isto só acontece quando existe um elo de confiança estabelecido entre todas as partes de uma organização”, refere. Paula Borges acrescenta: “Aqui, é muito importante o papel do chefe de equipa. Numa empresa, as pessoas não se expõem se o líder não o fizer primeiro, tem de dar o exemplo. É preciso trabalhar muito a capacidade de exposição das pessoas.” E, finalmente, saber como aplicar essas ferramentas todos os dias, desenvolvendo cada vez mais o sentido de pertença -e a confiança. Um processo contínuo.
Ao longo desta caminhada, analisam-se os stakeholders, definem-se e alinham-se valores comuns, fala-se sobre o “elefante que está na sala”, promove-se o feedback efetivo: estes são alguns dos instrumentos prescritos para uma gestão por valores, que são adaptados de acordo com a situação específica de cada empresa.
Às vezes, é só preciso pôr as pessoas a falar. “A comunicação deficiente acontece mais vezes do que seria expectável. Às vezes, simplesmente porque as empresas não celebram os resultados com os trabalhadores.
Bastava um: ‘Estiveste bem.’ Não é mais do que isto: back to basics.”
AMOR COMO CRITÉRIO DE GESTÃO
“É preciso líderes com coragem”
O modelo de gestão por valores desenhado, além de inspirado em autores como Richard Barrett, foi beber também ao livro de António Pinto Leite, presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores, advogado e sócio do escritório MLGTS, O Amor como Critério de Gestão. Como lembra o autor, “significa tratar os stakeholders como gostaríamos de ser tratados se estivéssemos no lugar deles, com a informação disponível. Este é o critério que melhor assegura a sustentabilidade da empresa e da economia no seu conjunto. O amor é o critério de gestão mais exigente, produtivo, inclusivo, prudente e atraente para a nossa empresa. Exige líderes com coragem e grande dimensão. Num país em que 90% da população se dizem cristãos, são poucos os que assumem estes valores. Ou os líderes empresariais são bipolares, ou não há como evitar confrontar a nossa liderança empresarial com esses valores”, explica Pinto Leite. Defende que a formação pessoal “é prioritária e a formação universitária decisiva: se as escolas de gestão apenas se quiserem comparar por índices de empregabilidade dos seus alunos e pelos salários e bónus que conseguem 10 anos depois, não há compromisso ético que resista”, afirma. Pinto Leite acredita que se as lideranças se regessem por valores cristãos, em casos como o BES e a PT “teriam sido evitadas algumas decisões que tiveram consequências danosas para tanta gente, incluindo para os próprios que tomaram essas decisões. Se gerirmos tratando os outros como gostaríamos de ser tratados, haverá riscos que não se correm, decisões que não se tomam”. “Quando participei no The Lisbon MBA (Nova/Católica) para falar de sustentabilidade das organizações, um ilustre professor de Economia disse-me algo perturbador: as universidades ensinam os alunos a serem amorais e, se necessário, imorais. Há uma tensão entre o desejo de um compromisso ético sério na gestão empresarial e uma ideia aparentemente generalizada de que a amoralidade é condição de sucesso na atividade económica”, conta.
Este artigo é parte integrante da edição de janeiro da revista EXAME