“Ambrósio, apetecia-me tomar algo.
Paramos para a senhora comer alguma coisa?
Não. Queria algo… bom.
Compreendo, senhora.
Apetecia-me Ferrero Rocher.
Tomei a liberdade de pensar nisso, senhora.
Hum…oh, bravo Ambrósio”
Não é por acaso que começamos este texto com o diálogo de um anúncio dos anos 1990. Mas porque demos de caras com a recriação deste par televisivo numa das ruas da quinta edição da Comic Con, pela primeira vez a decorrer no passeio marítimo de Algés (antes era na Exponor, em Matosinhos)
Núria Santos, 26 anos, veste um impecável fato saia-e-casaco amarelo, com chapéu de abas largas a condizer. E nem tropeça nos saltos altos que compõem o resto da fatiota, produzida com ajuda de uma costureira. A seu lado está o marido, João Mendes, da mesma idade, impecavelmente trajado de Ambrósio. Quando não estão assim vestidos, parando a cada pedido de fotografia, exercem ambos medicina em Santarém. “Este disfarce faz parte da cultura pop e encaixa perfeitamente no slogan do festival: be whatever you want [sê aquilo que desejas].”
O casal estava de fazer parar o trânsito. De tal maneira, que Nuno Markl, presente nesta edição com a recriação da sua mítica cave, pediu a este irrepreensível par que subisse ao palco no início da apresentação de sexta-feira, 7, perto da hora do almoço. Perante um auditório cheio, com capacidade para 400 pessoas, o humorista conversou com os seus quatro convidados: César Mourão, um anti-fã da cultura pop, Marcos Bessa, o português designer da Lego, Diogo Beja, radialista e Joana Espadinha, música, que acabou a cantar um tema com o irmão.
Estiveram todos sentados, durante uma hora, à frente de uma parede que simula a estante carregada de livros da especialidade que Markl guarda com carinho. O resto dos acessórios que se vêem em palco são reais, como um ET em tamanho real ou um urso Ted. “Esta iniciativa é fantástica e satisfaz uma razoável comunidade de pessoas que tem vindo a aumentar”, nota Markl. “Senti que esta coisa de ser geek se estava a tornar mainstream com o sucesso de The Walking Dead. Sempre gostei de filmes de zombies, mas desde então deixei de ser olhado de lado por causa disso. Gosto de ver aqui famílias inteiras e não apenas caixas de óculos.”
Isto de se achar que a Comic Con é só para nerds e gente estranha, que gosta de se vestir como os seus heróis, mesmo sem ser Carnaval é um cliché. Na prática, acredita, “não é assim tão hostil”. É verdade: aqui as pessoas integram-se facilmente e encontram algo com que se identificam, como uma série de televisão ou uma personagem de BD como o Tintin. Podemos não ser nada ou ser… o Ambrósio, com um bigode grisalho e um pratinho de Ferrero Rocher de faz de conta na mão.
Assim que saiu da sua cave improvisada, Markl foi para casa descansar. Desta vez não esteve nas filas para conseguir um autógrafo de um dos seus autores preferidos de BD.
Nem por isso a espera foi menos longa. Nuno Rebelo, 44 anos, vestido com uma t-shirt da Marvel, e a sua colega de trabalho Isabel Moreia, 40, que o digam. Estão no topo de uma fila de quatro dezenas de pessoas que não se importam de secar ao sol, carregados de livros e outros objetos, em troca de uma assinatura, um sketch e dois dedos de conversa com o brasileiro Joe Prado, por exemplo. Eles, que já foram às edições anteriores da Comic Con, dispensando sempre o cosplay (a arte de se vestir como os heróis pop), sonham com uma viagem até à convenção de Nova Iorque, a meca dos amantes de Banda Desenhada.
MAIS PESSOAS QUE A WEBSUMMIT
Quando Paulo Rocha Cardoso decidiu trazer a Comic Con para a capital sabia que ia ser um desafio passar de 60 mil metros quadrados para quase o dobro e de um evento indoor para outro maioritariamente exterior. O custo de um stand médio ultrapassa os dois mil euros pelos quatro dias, mas nem todos os comerciantes consideram que o investimento irá ter retorno satisfatório. Se bem que em Matosinhos, esta convenção mobilizou mais pessoas que a Websummit na capital. E nesta edição espera passar a barreira dos cem mil visitantes.
O Nos Alive recebeu, em 2018, 165 mil pessoas em três dias, há quase dois meses, neste mesmo recinto. Aliás, passar pelo túnel da estação da CP de Algés, percorrer todo o corredor de acesso à entrada, sempre com gente de um lado e de outro, é um dejà vu. Embora reconheçamos o espaço, a relva sintética, a miríade de carrinhas de street food, a barraca das imperiais, os bombeiros em SOS, a veículo da polícia em alerta e a marca que patrocina, também é fácil encontrarmos as diferenças.
Em vez de meninos de cerveja às costas, cruzamo-nos constantemente com gigantones zombies à la The Walking Dead. Não há looks fashion, mas cabelos às cores e muitas roupas fora do vulgar, mochilas carregadas de crachás e com porta-chaves pendurados. E as setas indicam caminhos para o cinema ao ar livre, a área Pop Asia ou a zona de Cosplay…
Depois, não há música. Ou melhor, ouvimos K Pop, o fenómeno coreano, e até vemos gente que se arrisca a dançar. Mas onde se encontra mais malta é na área de gaming – são mesas e mesas com jogos, repletas de jovens de auscultadores nos ouvidos e olhos postos nos ecrãs dos computadores. O bruááá de fundo só poderia ser descrito por onomatopeias que traduzissem pontapés, tiros ou gemidos. Queremos sair daqui e ir para o ar livre, mas é impossível não parar ao pé de uma jaula em que se experimentava um novo jogo de realidade virtual inspirado no ambiente faroeste, porque se trata de um cenário inusitado, para dizer o mínimo. A calma e o ambiente da zona de jogos de tabuleiro são opostos – e também lá está muita gente em interação.
Na tenda Nostalgia podemos jogar TV Brinca, só para quem se lembra dos primórdios das consolas, com gráficos minimalistas, a preto e branco. Bip, bip, é o som do pontinho a bater nos traços que fazem de balizas. Mas também há flippers, packman e outros clássicos de Arcade. Uma área que é frequentada, estranhamente, por pessoas de todas as idades e não só por saudosistas dos anos 1980.
Ricardo Moreira, 47 anos, ainda nem foi a este espaço. Para já, está sentado numa mesa a consultar o jornal da Comic Con que tem o programa diário. Dá nas vistas, até mesmo aqui, porque se veste de Vicking, aproveitando a barba farta que dá mais realismo ao personagem. “Toda a gente devia vir um dia para ver como é. Afinal, quem não gostas destas coisas?”, questiona, sempre bem disposto e aliviado porque ninguém lhe dizer que é maluquinho, só porque se mascarou fora de época.
O seu disfarce teve custo zero, porque tinha os acessórios e as roupas são velhas. Mas há por aqui muita gente que passou meses a elaborar o fato e gastou para cima de uma centena de euros em cosplay, para desfilar pelas ruas da Comic Con. É o caso da Rainha de Copas (da Alice no País das Maravilhas), de Guts (de anime) ou de Solaire (de um jogo), só para citar os nomes de três das mais espetaculares personagens, representadas a regra e esquadro, com quem nos cruzámos. Já para não falar das assustadoras freiras que por aqui andam a rezar em ladainha, a propósito do filme de terror The Nun, que acaba de se estrear nos cinemas. É assim, tão diverso quanto isto, o universo pop.