O Porto está na moda, mas há uma cidade que não se vê da montra. É aquela onde António Gomes, do cabeleireiro Cortes e Gomes, tesoura o cabelo a clientes fiéis, quando adoentados em casa ou internados nos hospitais. É a do senhor Ramiro que, acometido de infeção súbita, tranca a porta do restaurante Mini-Chefe e o correio fica à guarda da ilha do 125. É a da Manuela Monteiro e do João Lafuente, do Espaço Mira e do Mira Fórum, pioneiros da pegada cultural de Campanhã, onde conheceram a operária de afetos Rosa Meireles, da adega A Viela, que forra estômagos e paga quartos de pensão a existências rasteiradas pela vida. É a cidade do senhor Almeida, agricultor montado a cavalo, vendendo hortaliças, pelas casas da Foz, e da Isabel Fontoura, “mãe dos gatos”, que caminha 15 quilómetros diários para alimentar 200 felinos de rua. Neste território, o Grupo de Amigos das Adegas e Tascas do Porto distingue ícones do petiscanço, besuntados de nostalgia, antes que a extinção os leve. E ainda há quem confie as chaves do carro a arrumadores, coloque flores frescas e acenda velas no nicho de Santa Ana, na Sé, e vá ao Prado do Repouso enfeitar o memorial das vítimas da tragédia da Ponte das Barcas, ocorrida em 1809.
Nesta polifonia urbana perduram resquícios de identidade, memória e coesão agarrados como lapas ao quotidiano. Enquanto isso, a cidade-postal anda no laré, a pavonear-se, entre turistas e investidores. O Porto rejuvenesceu. Facto. Posa para a selfie e fica bem no retrato. É vê-lo embriagado de sucesso, estampado nas revistas internacionais. Em 2016, recebeu quase 1,5 milhões de turistas. Há dias superou 5 400 alojamentos locais, hostels e hotéis registados no Turismo de Portugal, 587 desde janeiro. Há um negócio destes por cada 40 habitantes. Previstas para 2020, 7,4 milhões de dormidas foram pulverizadas. Entre 2012 e 2017, abriram 254 lojas. Fecharam, ou foram demolidas, 252.
A Confidencial Imobiliário fala em €50 milhões investidos na primeira metade de 2017. No ano findo, houve 374 construções novas e reabilitações. Talvez ainda neste ano, o Jornal de Notícias, último grande matutino do Porto, deixará a Baixa, cedendo a torre histórica a um hotel temático. O edifício “A Nacional”, do arquiteto Marques da Silva, que ajudou a moldar a Avenida dos Aliados, já terá sido vendido a investidores estrangeiros. O mercado do Bolhão vai para obras. No antigo quarteirão da Casa Forte nascerá o Bonjardim City Block, maior projeto imobiliário da Baixa. Em cinco anos, o Porto perdeu mais de 5 500 eleitores, mas tem, pela primeira vez desde há muito tempo, saldo positivo de 388 residentes.
O exílio, por dentro
Os números não mentem, mas há outros.
O último relatório do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, de fevereiro, sinalizou 2 094 famílias sem casa, 40 por cento da área metropolitana. Segundo dados do Balcão Nacional de Arrendamento, do Ministério da Justiça, nos últimos cinco anos entraram 1 229 requerimentos de despejo no Porto, tendo sido concretizados 591. Há ainda 198 casos pendentes. “São números algo assustadores, pois, na maioria das situações, trata-se de pessoas idosas, isoladas, com graus de dependência elevados”, refere Rio Fernandes. Para o geógrafo, “o risco de termos uma cidade anónima, para visitantes, e pouco nossa, é real” e está explanado num artigo científico que elaborou com os investigadores Pedro Chamusca, Luís Monteiro e Jorge Pinto, a publicar em breve.
Uma manifestação pelo “Direito à Cidade” sai à rua, no dia 7, e nas redes sociais multiplicam-se páginas a denunciar o Porto que se vende, sem cuidar da alma. “Qualquer dia é preciso contratar figurantes para o centro histórico”, ouviu-se num debate promovido pelo PSD. “Nem os inquilinos são santos nem os senhorios demónios. A pressão maior é de imobiliárias e de chicos-espertos. Até parece que vamos ser algum Dubai”, ironiza José Fernandes Martins, da Associação de Inquilinos e Condóminos do Norte de Portugal, um dos quatro juristas da “casa”, atarefados com perto de 60 consultas semanais. “Já temos mais processos de despejo do que em todo o ano anterior. Isto é pior do que aquilo que os cowboys fizeram aos índios.” A associação ganhou um caso no Tribunal Constitucional e coleciona histórias sórdidas. “Ou o senhor facilita ou mandamos um caterpillar arrasar tudo”, ameaçou a advogada de um proprietário. Há inquilinos a quem retiraram anexos às habitações, mudaram fechaduras e arrancaram janelas, deixando-os à mercê da chuva e do vento. “No passado, os velhos aguentaram casas e telhados às costas. Os agredidos de hoje podiam ser nossos pais ou avós”, ilustra.
A ameaça de despejo assume muitas caras e não escolhe idades.
“Aumentar a renda 300 euros é uma expulsão encapotada. E há senhorios a exigir três meses de entrada, fiador e IRS, uma forma subtil de selecionar”, conta Ana Barbosa, 28 anos, única residente num prédio de quatro andares, na Rua da Conceição. Paga €290 pelo T1+1, no qual fez obras, mas o proprietário reformulou o edifício para oito T0 e Ana tornou-se um empecilho, apesar de ter contrato até 2020. Chove em casa, a humidade alastra. Antes, cortaram a água, arrancaram a porta e a caixa do correio. Ela encaminhou a correspondência para a Senhora da Hora (Matosinhos), onde vivem amigos para os quais o preço de morar no Porto já foi romântico, mas agora é pornográfico. Vinda de Paredes há seis anos, Ana está às escuras e não é apenas metáfora. “Sinto-me invisível, em todos os sentidos. À noite, entro no prédio e não tenho luz nas escadas, uso o telemóvel.” Trabalha na Trofa, ganha menos de €1000 e gasta €46 em transportes. “Talvez tenha de partilhar casa. O Porto atual é injusto para a minha geração.” Outrora seduzida pela rede de amigos, dinâmicas culturais e artísticas da cidade, sente-se segregada. “Jantar fora com amigos é uma reflexão que me permito fazer uma vez por ano, tendo em conta o preço médio dos restaurantes. Estou no limite.”
Em Cedofeita, Isaura Pereira, 75 anos, fechou em janeiro a loja centenária de selos, postais e moedas, onde trabalhou meio século. No gaveto com a Rua de Miguel Bombarda, edifício classificado como sendo de 1813, constrói-se agora o “Palácio dos Príncipes”, 19 apartamentos de luxo e cinco estabelecimentos comerciais. “O novo dono do prédio disse-me logo que não queria ali portugueses”, conta Isaura. “Bateu €6000 para eu entregar a chave e pôs-me fora. A loja era procurada por gente da cidade. Dias depois passei por lá e vi tudo espatifado”, lamenta. “Está tudo a ser corrido de Cedofeita. Isto não é futuro para o Porto, mas eu já não estarei cá para ver.”
Tem mesmo de ser assim?
Sónia Alves, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, estudou as transformações no Porto e percebeu que o “modelo neoliberal” de requalificação urbana vem atrelado ao dinheiro de todos nós, sem contrapartidas. “Se há grandes negócios com privados, as mais-valias têm de ser capturadas pelo interesse público”, defende a investigadora, agora na Universidade de Cambridge. “Nessas operações, cujo exemplo maior é o quarteirão das Cardosas, o dinheiro público é usado para expropriar edifícios ou terrenos, em benefício dos investidores, sem acautelar percentagens para habitação económico-social.” E diz: “Há mecanismos legais para definir limites, a nível local. A decisão de não usá-los é política.” Na Dinamarca, a compra de casa é proibida a estrangeiros, a menos que residam em permanência no país há cinco anos. Outros negócios têm rédea curta: “A Carlsberg quer fazer um loteamento no Centro de Copenhaga, mas a Câmara exigiu à empresa 30 por cento de habitação económica para dar o alvará”, exemplifica Sónia Alves. “Infantários, escolas, transportes públicos, etc., dependem da existência de população. Se esta for cada vez menos, a cidade pagará um custo elevado”, alerta.
O cerco às ilhas
Não era preciso ocorrer uma tragédia para conhecermos as bainhas da cidade que desfila na passarela – mas ela aconteceu.
Foi em finais de fevereiro, na rotunda da Boavista. Um edifício ardeu, uma mulher lançou-se do segundo andar para fugir ao fogo e a fratura social ficou exposta: o prédio escondia uma pensão clandestina. Nela viviam 16 pessoas dispersas por espaços minúsculos, separados por contraplacado, partilhando cozinha e casa de banho. O senhorio cobrava €250 mensais por “quarto”. Durante dias, nada se soube dele. A polícia ainda investiga o caso.
Bíblias ambulantes da Invicta, Germano Silva e Hélder Pacheco não têm saudades dos estendais de miséria, pobreza e degradação. Em entrevistas recentes ao Público, os historiadores e cronistas do Porto elogiaram as mudanças, lisonjeados com a preferência turística pela cidade que os veste por dentro. Mas eles calcorreiam bairros, ilhas, ruas, vielas, onde tratam por tu rostos e gentes forjadas no granito desta geografia. Invade-os a nostalgia da “cidade humanizada, densa, popular e cheia de identidade” e sofrem com a erosão social, os vazios a abocanharem famílias, as zonas agonizadas, exiladas no seu próprio chão.
Praça da Alegria, perto da Rua de São Vítor, zona com maior densidade de ilhas (33). Da porta da drogaria, António Teixeira, 60 anos, conta décadas a ver passar a história deste pedaço do Bonfim. “Para aqui vinha o pé-rapado, gente do rendimento mínimo, velhos com reformas de miséria”, assume. “Agora, o que tem paredes é para aviar, até merda compram! Os estrangeiros andam loucos, turistas são às manadas!” Casais de Tóquio, arqueólogos de Barcelona, o italiano de Milão que vende música, a francesa a trabalhar na Galiza, elogiam a proximidade, os transportes. Querem ficar, haja onde. “Pelo menos, não há casas abandonadas nem pessoal da droga e do gamanço.”
Abriu uma barbearia pós-moderna, com descontos para residentes, e uma “pastelaria artesanal”, com café “de alta qualidade” a €1,20. Uma ilha em ruínas vendeu-se por quase €400 mil. A Ilha do Padeiro, onde sobram duas pessoas, já sofre de turistificação: agora chama-se Ilha Douro, tem vinte “moradias T0” a €72 500 cada e calçada portuguesa no corredor. “Qualquer dia é o senhor que vai embora”, desabafou António Teixeira, certa altura. “Até andam tolos com a casa das putas! Estão mortinhos por lhe pôr as mãos!”
O “senhor” é Jorge Ricardo Pinto, geógrafo, cujas raízes estão nestas ruas: a família paterna era das ilhas, a materna do lado dos senhorios. Hoje é depositário de relatos de hostilidades entre os que fazem perguntas sobre casas disponíveis, tocam às campainhas e entopem caixas de correio com folhetos, e aqueles que assistem à partida de amigos e conhecidos. “É às escâncaras, assédio total.” Mas no 166, Ilha do Óscar, Joaquina Costa, 78 anos, seis filhos, 12 netos, não se apoquenta. “Vieram aqui dois franceses para comer caldo-verde. Queriam pagar, mas não aceitei. Agora querem voltar.” Esta é uma ilha atípica: as habitações pertencem a ramos de duas famílias. Corredor arranjado, casas cuidadas, WC privado, “é quase um condomínio fechado”, graceja Jorge Ricardo Pinto. “As ilhas são muito a imagem de quem lá vive”, reforça.
No Porto, há 957 destas fileiras de casas, ao longo de um pátio comum, com mais de 10 mil pessoas. Reabilitá-las custa, segundo a Câmara, cerca de €32 milhões. O Parlamento já recomendou ao Governo a criação de instrumentos legais para salvar esta herança da cidade operária.
Quando aqui chegou, em 2009, o arquiteto valenciano Aitor Varea Oro foi recebido a espingarda na Ilha do Galo Preto. “Difícil, depois, foi sair das casas”, conta, caminhando pela rua que resiste a ser empalhada e onde a vizinhança amortece fracassos humanos e urbanos. Lá estão os cafés, o bricabraque e o Sporting Clube de São Vítor, mas também há negócios informais de garagens alugadas a turistas e anúncios da imobiliária de luxo Sotheby’s. Na ilha do 172, da “dona Fátima”, as doze casas agonizantes darão oito, novinhas, graças ao Habitar Porto, coordenado por Aitor. Apoiado pela Câmara, pelas Juntas do Bonfim e Campanhã, o projeto estende-se a outras zonas. Missão? Canalizar recursos públicos para uma cidade mais inclusiva, envolvendo senhorios, inquilinos, profissionais e comunidade na construção de habitações a preço justo e na criação de emprego local. “Não é preciso uma revolução”, atalha o espanhol. “Temos de conquistar proprietários para o nicho das rendas controladas, superar a iliteracia urbanística, social e burocrática, e promover uma intervenção exemplar.” No seu mundo, a arquitetura serve para transformar a vida das pessoas. Mas esse “trabalho de filigrana” é, aos olhos de outros do mesmo ofício, “um exercício menor: só lhes interessa a estética e a capa de jornal”.
O coletivo de arquitetos Oitoo segue uma terceira via: reutilizar imóveis e espaços abandonados para reforçar laços de bairro e evitar que ruas impessoais produzam anónimos, fechados no casulo. “A ocupação intermédia, temporária, pode ajudar a zelar pelo que temos, pois os problemas do meu vizinho são os meus”, descreve Laura Lupini. “Vozes isoladas, sozinhas, num momento de desespero, não valem nada. Isto não pode ser uma luta entre pobres”, desafia João Machado. O coletivo promove ações em lotes devolutos ou espaços vazios, desafiando quem passa a escrevinhar sugestões para o uso dos lugares e a colá-los num mural. Num edifício esquecido da Rua dos Bragas, os autocolantes borbulhavam de ideias para fazer hortas comunitárias, parques infantis e até um atalho…“para o outro lado”.
A cidade “do piorio”
Há uma zona de fronteira na cidade, a oriente. Diversificada, longe da mesmice e maquilhagem turísticas. Quando aterraram no Porto, o guia argentino Alejo e o namorado colombiano Andrés, desenhador industrial, quiseram conhecê-lo através dos “passeios do piorio”, da Worst Tours, selo da Associação Simplesmente Notável. Durante cinco horas, a arquiteta Margarida Castro Felga foi a cicerone deste percurso para viajantes com gosto por vias travessas, imaginários de cidade, a leste da fidalguia do Centro, pelas traseiras. O caminho faz-se por galerias comerciais decrépitas, ruas espatifadas, paisagens desoladoras. Margarida aborda a decadência das casas burguesas, a luta por cada metro quadrado e estaca diante de ruínas. “Faz sentido construir hotéis e deixar tantas casas abandonadas que poderiam abrigar projetos comunitários?” Vai-se pela Travessa do Monte Tadeu, Rua da Póvoa. Uma mulher passa a ferro na penumbra da mercearia vazia, curiosos coçam as costas à entrada do tasco e o casal latino-americano espanta-se diante do filme série B, becos sem saída da cidade em frangalhos. “Este é o novo som do Porto”, ironiza Margarida, a propósito do barulho das obras de um novo hotel, ao lado das Eirinhas, onde subsistem ilhas.
Alejo e Andrés surpreendem-se com um arrufo de namorados e palavrão a condizer. “Bichas usa-se aqui?”, perguntam. “O turismo ajudou a combater preconceitos e comportamentos sexistas agressivos. Nesse aspeto, estamos melhor”, responde Margarida, antes de entrar na Adega Fontoura, poiso de bairrismo e culto clubístico, onde o argentino e o colombiano deliram com tremoços. Pelas mesas, há africanos, ucranianos e indianos de olhar perdido. “Ninguém passa bola a isto. É uma zona pobre, a começar pela Quinta do Gama, mas, quando chegam as eleições, vêm todos por aí acima”, resume o proprietário, Fernando Coelho, 60 anos. A guia incentiva sempre os turistas a pagar o café. “Se te cobrarem 60 ou 70 cêntimos, é justo. Se te pedirem €1,20, estás no sítio errado”, explica. Alejo e Andrés querem saber mais: inflação, efeito das políticas do FMI. Fala-se disso deixando o Bonfim e alcançando Campanhã. Atravessa-se por baixo a VCI. A conversa não tem lugares ermos: azulejos, colonialismo, educação, as vistas para o Estádio do Dragão. “Única religião que não se discute.” Na Bonjoia, o diálogo já é sobre benesses públicas aos privados. “Na Argentina também é assim”, brinca Alejo. “Temos o sistema de benefícios da Noruega e as exigências da Zâmbia.” Agora é dar da perna para abraçar o Douro com o olhar, debaixo da Ponte do Freixo. “Babylon City”, grafitou-se, num pilar. Caminha-se pela linha férrea encerrada em 1989, ramal a ligar Campanhã à Alfândega, rio ao fundo, quilómetros à espera de uma ecopista ou ciclovia. “Toda esta zona está sob ataque de interesses imobiliários”, alerta Margarida. Cortaram água e luz a uns casebres. “Não será o dinheiro do turismo a salvar e a manter o Porto.” Pôr do Sol a jeito, Alejo e Andrés tiram uma foto, apaixonada. Descem a escadaria contornando a horta onde se lê “Não rouve, peça. Eu dou”, e a viagem termina junto ao funicular dos Guindais. “Valeu a pena!”, despede-se o casal. A Worst Tours, entretanto, terá de sair até ao final de maio do quiosque camarário que ocupa junto ao jardim de São Lázaro. A autarquia não cede o espaço, e a dupla de arquitetos Margarida e Pedro Figueiredo questiona-se: ainda haverá lugar para protagonistas da cidade plural, mestiça, diversa, onde caibam variadas conceções do mundo e da vida na urbe?
Identidade: procura-se
Quando a revista Smart Cities perguntou a Chuck Wolfe o que procurava numa cidade, o especialista em urbanismo, de visita a Portugal, respondeu: “Realidade” e “Identidade”. Depois acrescentou: “Mas atenção para não a transformarmos numa encenação ou num museu.”
Se Chuck não foi aos Clérigos, parece. A antiga Casa Oriental deu lugar a dois negócios: o da “conserveira do Porto” e o dos “pastéis de bacalhau”, ambos em versão gourmet. Tripeiros arreigados torceram o nariz à origem dos proprietários, ou o termo, por aqui, não fosse “bolinhos de bacalhau”. Na primeira loja, as empregadas andam com latas de conserva na cabeça, quais abelhinhas. Na outra, pagam-se €5,5 pelo café e pastel com queijo da serra. “Quando passava por lá com os meus alunos, abanava os ridículos bacalhaus de plástico, pendurados à porta. Tanto os insultei que tiraram aquilo”, conta, divertido, o geógrafo Rio Fernandes.
A gastronomia mutante, “neotradicional” ou “pseudotípica”, vai tomando conta das ementas, das francesinhas de leitão às bolinhas de alheira com queijo, sem esquecer os hambúrgueres “tradicionais”. Nada parecido é servido no Café da Porta do Olival, o mais antigo do género, na sabedoria de Germano Silva. Ali perduram vestígios da muralha fernandina. Aníbal Fonseca, 61 anos, soube da venda do edifício, propriedade da Santa Casa da Misericórdia de Lamego, pelo jornal. “Os novos donos andaram dias a fazer medições e rascunhos à mesa do café. Era para um hostel. Quando me pediram a chave para ver o resto do espaço, disse: ‘Não vão a lado nenhum!’” Usou o direito de preferência, contestou o negócio em tribunal, puxou das poupanças e açambarcou o café e a pastelaria. “Paguei €425 mil, um exagero!” O caso lá anda, na Justiça. “Conheço quatro gerações nesta zona”, garante. “Os laços perdem-se, está muita gente a sair, mas aluguei seis apartamentos a estudantes, por cima, e não serei mais um a desfazer-me de comércio que faz falta à cidade.”
Para Miguel Carneiro, 47 anos, que entrou na Moreira da Costa, na Rua de Aviz, ainda na alcofa, essa não é apenas uma vontade: é um legado. Fala a quinta geração do alfarrabista mais antigo da cidade (1902), depositário do boletim O Tripeiro. Repousam ali, da entrada à cave dos tesouros, volumes atados com cordas, edições policopiadas, antigas e raras, sobretudo clássicos da literatura nacional ou francófona, mais de 30 mil títulos. Bustos da República, Eça, Camões e Camilo velam pelas memórias, os clientes são de renome: Germano Silva, os ex-ministros Valente de Oliveira e Braga da Cruz, e o escritor Pedro Mexia. “O Porto intelectual, e não só, sempre passou por aqui”, garante Miguel. “Já aguentei tudo, o meu sonho era que a livraria permanecesse no quotidiano da cidade.”
O espaço é uma espécie de aldeia de Astérix. Resiste ao avanço das obras no Hotel Infante de Sagres, cuja proprietária é dona de metade do quarteirão, livraria incluída. Resiste ao metralhar de berbequins. Resiste à crise – “se não fossem dois mil clientes digitais eu tinha fechado”. E resistiu a propostas para abandonar o local. A Sagrotel, dona do luxuoso Yeatman, em Gaia, insiste na desocupação: tem planos para o espaço que, em breve, receberá a vizinhança do restaurante da Vogue. O alfarrabista, classificado “loja histórica”, está, por ora, salvaguardado. “Na Câmara foram impecáveis”, elogia Susana Fernandes, mulher de Miguel. “Não faltam assédios e operações de charme para sairmos. Uns a cobiçar o nosso património, outros a quererem ver-nos pelas costas. Mas cá estamos, só não sei por quanto tempo”, garante ela. “Aqui sou um figurante”, resume Miguel. “A Moreira da Costa não é minha – é do Porto.”
São 49 os estabelecimentos protegidos pelo programa “Porto de Tradição”, criado pelo município para acudir arrendatários mais vulneráveis a despejos, na sequência da liberalização da Lei das Rendas. Outros aguardam classificação, entre eles a Pastelaria Serrana, na Rua do Loureiro, ao lado da Estação de São Bento. De manhã, é um vê se te avias por causa das bolas de Berlim. As referências no New York Times e as cartas enviadas por clientes do Canadá, França, Alemanha e Bélgica, emolduradas, são orgulho da casa. No século XIX, a Serrana era ourivesaria.
Mantém o gradeamento de ferro do andar de cima ao estilo de Arte Nova e a centenária tela de Acácio Lino no teto. O prédio engloba a queijaria Arcozelo. Foi comprado por uma sociedade de investimento de Pedro Pinto, ligado à livraria Lello. “Um esforço
financeiro exigente, bem superior a um milhão de euros”, confirmou o próprio à VISÃO, apostado em resgatar o edifício “para a vida diária do Porto”. Na confeitaria e na queijaria estão apreensivos, desconhecem-se os planos.
“A cidade já não é para os que cá moram, perdeu essência”, lamenta Mónica Oliveira, 47 anos, da Serrana. “Não me disseram se fico ou se saio”, garante Manuel Melo, 71 anos, à frente da Arcozelo desde 1959. Na rua residem, no máximo, cinco pessoas, asseguram ambos. Os alojamentos são turísticos e mais virão. Há semanas, foram assaltadas várias lojas, e os ladrões quase puderam fazer uma pausa para tomar café. “Os turistas ajudam ao negócio, mas estão de passagem. Qualquer dia fica tudo para os ratos.”
Na Rua Fernandes Tomás, Carlos Correia, 58 anos, dirá o mesmo. No Depósito de Bacalhau, os clientes são das redondezas. “Vivo do povo, não dos turistas. E povo já há pouco”, desabafa. No quarteirão em frente, ganha forma o seu maior pesadelo: o novo Continente, virado ao Campo 24 de Agosto, a inaugurar neste ano. “O Rui Moreira conhece as dificuldades do comércio tradicional. Dantes criticava, mas está a fazer igual ou pior”, acusa. “A concorrência é boa. Se eles se comerem uns aos outros, a gente ganha, não é?”, crê António Gonçalves, 60 anos, que vai às obras dar de comer aos primeiros “clientes” do hipermercado: uma ninhada de gatos, escondida na vegetação. “As políticas públicas devem defender a geodiversidade, proteger espécies da cidade em extinção. Se for a lei da selva, ganha sempre o mais forte. Para isso, não são precisos políticos”, defende Rio Fernandes.
O Tê veio e atravessou o rio…
Numa manhã enevoada, o escritor Carlos Tê deixou o refúgio em Gaia, atravessou o rio, saiu no Bonfim e calcorreou ruas com a VISÃO. “Sinto-me um nómada na minha cidade”, admite. Se há um Porto Sentido é o dele, na voz de Rui Veloso. Na antiga garagem da Automotora nasceu um parque de estacionamento, mas a memória é uma bússola. “Trabalhei aqui, empregado de escritório.” A Rua Alves da Veiga é o indício gráfico do Porto atual: seis alojamentos turísticos, um hotel de quatro estrelas em construção, e outro previsto para a esquina de onde sairá a loja dos Salesianos. “Nota-se o combate feroz do autêntico com as modas”, diz Tê, perto do Coliseu. Na Praça dos Leões, espanta-o a resistência dos Armazéns Cunha, “quase uma obsolescência”. Ah, no Carnaval jantou aqui perto, na Rua Sá de Noronha. “Encontrei o Casillas disfarçado de Zorro!”, ri-se. Aqui e ali solta indignações diante da vulgaridade do parque temático a armar ao típico, “tão patético, tão azeiteiro!”. A sua relação com a cidade é de perplexidade: “Sempre que venho à Baixa, algo mudou. Tem um lado fascinante, mas há uma sensação de remoção de qualquer coisa essencial.”
O escritor desce Cimo de Vila, título de um livro dele, em coautoria, mas também rua de nightsclubs fora de época, dos petiscos da Casa Louro e da Casa Crocodilo (couros, cabedais e solas). Espera-nos o almoço no Alfredo Portista, na Rua do Cativo, tasca em que o nome é emblema. Olhando às paredes, mosaico de heróis e troféus, Carlos Tê, ferrenho, está em casa.
Paulo Tavares, 44 anos, traz à mesa broa, salpicão, bolinhos de bacalhau, cervejas. Dali a nada, rancho. O filho dos fundadores da casa anda apreensivo com a velhice dos pais e com a papelada para se candidatar a loja histórica, não vá o senhorio tecê-las. Lamenta o definhamento das ruas, a partida de residentes, o estertor da convivência, o adeus “do falar à janela, das brincadeiras de crianças”. A rua tem turistas, mas “há cada vez mais roubos, vidros partidos”. Tê aprecia a faceta cosmopolita da cidade, à qual “o mercado conseguiu atrair dinheiro onde dificilmente ele chegaria”. O lado negativo “é o exílio das populações e a albufeirização, lado mais bronco do Algarve”. Os sinais de alarme já deviam estar ligados? “Podes preservar a identidade de forma um pouco fossilizada, mas a realidade não é assim. Cidades com uma população flutuante não têm alma”, explica, enquanto a clientela discute foras-de-jogo mal assinalados. O Porto genuíno arrisca ficar off-side? “Só saberemos daqui a 20 anos. O presente é sempre desinteressante, mas é cedo para dizer que a cidade se esteve nas tintas para as pessoas.” E merecerá um poema-canção? “O Porto Sentido é uma espécie de pedra do sentimento, difícil de remover. Já o tripeiro de gema estudou, viajou, é outro. Mas mesmo que seja dono do Empire State Building, uma parte dele será sempre da Rua da Bainharia. E isso não vai mudar”.