Por mais anódinos ou anedóticos, constrangedoramente irrelevantes, até infantis, que sejam os episódios narrados acerca de 42 figuras, na sua larga maioria da vida política, o livro Eu e os Políticos, Gradiva, tem gerado incómodo, polémica e indignação. O seu autor, José António Saraiva, durante 23 anos diretor do Expresso e mais uma década como diretor do Sol, arquiteto de formação, jornalista sem carteira, é o primeiro a dizer que algumas das revelações que faz “roçam a violação da privacidade”. Na verdade, algumas das supostas revelações do escrito roçam a publicidade enganosa. Ainda assim, no programa Governo Sombra, TVI 24, Pedro Mexia ergueu, um a um, três dedos que definem as três linhas vermelhas confessadamente ultrapassadas pelo autor: “Um, revelou conversas privadas. Dois, cita como fontes políticos falecidos, que já não o podem desmentir. Três, revela pormenores sobre a sexualidade de terceiros, nessas conversas privadas com políticos mortos.” Parece fazer o pleno.
O poster de Claudia Schiffer
Mas, afinal, de onde vem a importância de José António Saraiva? Durante 20 anos, JAS foi o diretor de jornal mais influente do País. A quem todos os políticos atendiam o telefone. Através do livro, transparece a ideia de que todos os políticos, banqueiros, empresários queriam almoçar com ele (aliás, muitas revelações passam-se durante refeições). Embora as personagens se restrinjam ao mesmo núcleo de sempre, frequentador do mesmo restaurante de sempre, na zona do Marquês de Pombal e já conhecido nas duas obras anteriores, Confissões e Confissões II. Ausentes, outras figuras incontornáveis no Portugal dos últimos 35 anos, mas que parecem escapar ao universo onde se moveu o influente diretor.
Como conta quem privou com ele de muito perto, tinha um gosto especial em fazer esperar os políticos no tal restaurante. Era um diretor distante, reservado, tratava quase toda a gente por você, não conhecia os nomes de muitos dos seus jornalistas, não dava confiança, vivia no seu casulo. Mantinha a porta do gabinete aberta, mas duas secretárias impediam a entrada a qualquer um. Era cordato, bem educado, raramente levantava a voz, mas o seu lado circunspecto contrastava com o poster da Claudia Schiffer pendurado no escritório. Convivia com altos dignitários, mas de quem gosta verdadeiramente, diz-se, é de Jorge Jesus. Quem trabalhava com ele apreciava a forma como dava carta branca aos editores, “dava-lhes liberdade, confiava e defendia-os”, e em ambas as redações por onde passou sempre se brincou com as suas crónicas, em que equilibrava os argumentos como quem arquiteta um edifício. O seu estilo “por um lado isto, por outro lado aquilo” criou entre os jornalistas a piada de que só teria lido meio Hegel, “apenas a tese e a antítese: faltou-lhe ler a parte da tese”. Mas também vinha com ideias mirabolantes e bastante afirmativas.
E, digamos assim, originais. Em 2002, publicou no Sol a célebre crónica intitulada Homossexuais contestatários. Conclui, num elevador do Chiado, pela forma como um rapaz coloca os pés no chão, cruza as mãos uma sobre a outra, e inclina ligeiramente a cabeça, que ele é gay e atribui a responsabilidade da comunidade homossexual estar a crescer ao facto de figuras públicas estarem a sair do armário. E invoca para a orientação sexual questões de moda.
Por vezes, Saraiva parece estar a lutar pela medalha de ouro do politicamente incorreto – ou simplesmente pelo título de mente retrógrada do ano. Ficou célebre a crónica em que, refletindo sobre a mulher moderna, se insurgia pelo facto de que “hoje em dia as mulheres que trabalham fora de casa conversam mais com os colegas do que com os maridos”, atribuindo a este despautério o facto de crescerem as taxas de “infidelidade”. Além disso, para o articulista, “a casa fica vazia todo o dia e há tarefas que não se executam” e as mulheres, chegando ao lar “estafadas”, não têm paciência para “fazer nada”.
Aliás, em Saraiva as mulheres são frequentemente uma má influência: em novembro de 2015, na Tabu, revista do Sol, opinava que “esta deriva esquerdista de Freitas do Amaral se deve parcialmente à mulher, Maria José, de espírito muito livre, como se constata através dos romances que assina com o pseudónimo de Maria Roma”.
Os gays também não escapam: “Até há poucos anos, quando se falava em casamento (…) usava-se, também, para designar o ato, a expressão ‘‘constituir família’’. Porque a seguir ao casamento vinham naturalmente os filhos, os netos, etc. Ora, o casamento gay é por natureza estéril.”
Um ovo de Colombo chamado saco de plástico
Filho do ensaísta, filólogo e crítico literário António José Saraiva (e sobrinho do historiador televisivo José Hermano Saraiva), JAS nasceu em Lisboa, em 1947. Tem, portanto, 69 anos, curioso número, se quisermos citar Mota Amaral e entrar no espírito da coisa. Arquiteto de formação, colaborou em projetos como o da Caixa Geral de Depósitos, em Santiago do Cacém, ou o do Centro Social das Minas da Panasqueira, na Covilhã – mas seria menos pelo cimento e mais pelo papel que se evidenciaria. Escrevia, em 1965, no Comércio do Funchal. Vicente Jorge Silva reparou nele e convidou-o, mais tarde, para o Expresso. De colaborador, passou, em 1983, para subdiretor, assumindo a direção onde se manteve ao longo de 22 anos (entre 1983 e 2005).
Do balanço deste longo “reinado”, JAS gosta de salientar três iniciativas suas, momentos marcantes, golpes de génio, que se consubstanciaram em triunfos editoriais e também financeiros. O primeiro foi a conceção do célebre saco de plástico: o Expresso, por iniciativa do seu ex-diretor, é o único jornal – talvez do mundo, diz – que não precisa de uma boa capa para vender. “As pessoas tendem a falar disto em tom de brincadeira, mas, na verdade, o saco de plástico revolucionou o Expresso, foi um ovo de Colombo: permitiu que o jornal crescesse de forma brutal, os suplementos multiplicaram-se, trouxe conforto ao leitor, desafogo financeiro ao jornal e consequentes vantagens publicitárias.” Lembra também o Guia de Portugal (tiragem de 200 mil exemplares), em meados dos anos 90, algo de inédito até então. Geralmente, os fascículos dos jornais não eram produzidos pelo corpo editorial, mas estes levavam a marca Expresso. Além disso, tinham uma caixa arquivadora para colocar no porta-luvas. O terceiro exemplo de que se orgulha “foi uma pedrada no charco”: a extravagante foto de Ágata em cima do capô de um Mercedes vermelho que colocou na capa da revista. “Até aí a revista estava demasiado intelectualizada, fechava-se num gueto elitista. Eu percebi que tínhamos de nos abrir para outros temas e outros públicos. Não se pode ter medo de procurar um refrescamento e de quebrar tabus.” E essa é a qualidade que salienta para se ser um bom diretor: ter coragem.
Chamava-se Isabel…
Um dos jornalistas que mais anos trabalhou com Saraiva, precisamente 16, foi Henrique Monteiro, hoje administrador não executivo da Impresa Publishing e diretor coordenador editorial para novas plataformas. Monteiro não leu o livro – e não gostou. E explica, muito simplesmente, a razão pela qual não irá ler Eu e os Políticos: “Por dó! Trabalhei com este homem 16 anos e fui assistindo à sua progressiva entrada num mundo muito dele, que – para utilizar uma expressão benévola – se pode considerar loucura obsessiva egocêntrica”. Henrique Monteiro afirma à VISÃO: “José António Saraiva andava esquecido e quis reaparecer, mas fê-lo pela via mais rasca, ao nível de uma Casa dos Segredos.” Aliás, acrescenta, o título do livro diz tudo. E acentua a presença constante da primeira pessoa do singular, “como se ele fosse o centro da vida política portuguesa”: “Um ser estruturalmente egoico”, o que nem lhe parece estranho para quem já admitiu, sem ser a brincar, poder ganhar o Prémio Nobel com os seus romances. “É uma pessoa desmetaforizada”: “Não utiliza nem entende a metáfora.” E recorda uma vez, numa reunião do Expresso, em que JAS se exaltou com ele e, acometido de um lapso freudiano, lhe chamou “ó Isabel!” (o nome da mulher).
“Houve uma linha vermelha que foi atravessada”, continua Henrique Monteiro. “Ele diz que não sendo jornalista não tem de seguir a deontologia destes. Devia ter utilizado esse argumento para não ser diretor de jornais. Não se pode invocar ser jornalista para beneficiar das suas vantagens, e invocar não ser para as trair.”
O que nos diz Saraiva
JAS não acha nada disto: “Durante três décadas, acumulei material muito interessante e relevante, a partir do momento em que deixei de ter funções executivas pareceu-me ser o momento certo para o revelar”, comenta. Claro que aceita as críticas. “São pertinentes. É sempre duvidoso usar conversas pessoais, lançando-as no espaço público.” E admite sentir “uma pena sincera” das pessoas que, eventualmente, ficarão magoadas, mas, garante, o “outro prato da balança, o interesse histórico e político, pesou mais”.
A escrita do livro foi, diz, “um exercício solitário, um misto de ousadia e coragem”. Não contou nem mostrou a ninguém. Não queria conselhos que o restringissem. O primeiro a ler foi o editor. De resto, tratou-se de “uma decisão pessoal, que assumo com frontalidade e de peito aberto”. “É um livro escrito no fio da navalha”, remata.
Ter Passos Coelho, a quem dedica um capítulo, como apresentador (que aceitou mesmo antes de ler o livro, mas viria, mais tarde a pedir para ser “desobrigado” da apresentação) no lançamento representa, para ele, “uma manifestação de coragem, mas também de confiança”. Tanto ele quanto o editor entenderam que seria mais interessante que fosse um político a fazer essa função, “e não vou esconder que a simpatia que nutro por Passos Coelho pesou muito neste convite. Seria difícil convidar alguém do PC ou do CDS, e Passos Coelho, até por ser um político no ativo e líder do maior partido, estará lá, de certa forma, a dar caução ao livro, a mostrar que confia e tem estima por mim”.
Quanto à quebra do sigilo profissional, ou quanto muito a sua própria ética pessoal de não conseguir guardar um segredo, JAS nega: “A prova que consigo guardar segredo é de que os guardei durante mais de dez, 20, e, alguns, 30 anos.” Quer dizer que o dever de guardar uma confidência pode prescrever? “Sim, os segredos têm prazo de validade. Pode haver quem entenda que não têm, mas para mim têm.” E lembra livros de memórias como o de Kissinger, que até revelou segredos de Estado.
JAS não entende, portanto, o porquê de todo este alarido e acha tudo isto “um disparate”… Aliás, deixa-o perplexo justamente o facto de as reações negativas chegarem dos seus pares, jornalistas, e não dos políticos visados. “É muito estranho. E curioso porque geralmente os jornalistas costumam gostar de revelações, muitas vezes quebram até o segredo de Justiça, o que também não é legítimo.” Da parte dos políticos, só lhe chegaram reações positivas, e, até agora, não teve nem um único desmentido e acha muito difícil que tal venha a acontecer. “Tenho uma má memória para algumas coisas, mas é quase fotográfica para outras e perdura no tempo.” Por outro lado, ao longo de 30 anos de jornalismo foi juntando notas e compondo um diário, onde colecionava conversas, episódios, curiosidades, pormenores… Muitas vezes, escrevia primeiro de memória, e quando ia confrontar com os seus escritos estava tudo reproduzido ipsis verbis. Quanto à questão de reproduzir conversas de pessoas que já morreram, nem entende o argumento. “Não faz qualquer sentido. As conversas com Salazar foram publicadas postumamente. Ou se confia no autor ou não…”
As invejas e as tertúlias
Todos os políticos que constam do livro, contactados pela VISÃO reagiram com indiferença ou desprezo – ou com uma gargalhada. Garantiram que não iriam ler o livro nem “comprar” polémicas por “tão pouco” ou perder tempo com isso. Medina Carreira pouca importância dá ao caso e até diz manter toda a estima pelo comentador político que é JAS. Apenas Pacheco Pereira quer deixar uma indireta a Passos Coelhos: “Não tenho o hábito de apresentar livros que não conheço.”
A verdade, confessa JAS, é que sempre se sentiu um outsider no meio. “Nunca fui muito querido entre a classe jornalística, sou um arquiteto que conseguiu ser diretor de jornais durante 30 anos e isso desencadeou muitas invejas. Por outro lado, não faz o meu género ser um frequentador de tertúlias…”
Francisco Louçã chama a JAS “o jornalista que enoja o jornalismo e a decência.” E acrescenta: “Saraiva desce tão baixo que pouco há a dizer sobre o ocaso deste jornalista. O método editorial é uma aldrabice, as citações são presumivelmente uma fabricação, a intenção é uma vulgaridade, o objeto é bacoco, o livro é uma trampa e o homem é o que é.”
Já Seixas da Costa, embaixador, antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, carrega nas tintas: “Alguém a quem determinadas informações foram prestadas, numa conversa discreta, terá o direito, mesmo que muitos anos depois, de vir a público revelá-las, sabendo claramente que, com isso, quebrou a confiança que foi posta em si? E, em especial, se a revelação dessas conversas vier a afetar a imagem de pessoas, vivas ou já desaparecidas, será eticamente aceitável publicar – nas redes sociais, na imprensa ou em livro – tais dados? A resposta parece evidente para toda a gente, mas, aparentemente, para alguns, não o é. (…) Não conheço ainda um livro que se anuncia trazer umas dessas historietas de “diz-que-diz-se”. A confirmar-se que insere algumas revelações que a imprensa indiciou, esse “tabloide encadernado” deverá ser exposto ao opróbrio público. Se não foi possível evitá-lo, ao menos que sirva de mau exemplo. Mas, quando não há vergonha, não há remédio.”
JAS ameaça voltar à carga
De entre todos os episódios relatados, o que vem causando mais indignação é a afirmação, colocada entre aspas, da homossexualidade de um político e ex-ministro, supostamente revelada pelo próprio irmão, entretanto já morto. Daniel Oliveira comentou: “É feio divulgar conversas íntimas. É muito feio divulgar conversas íntimas sobre terceiros. É inacreditável fazê-lo quando a pessoa que é usada é familiar daquela cuja privacidade é devassada. É abjeto quando a pessoa usada já morreu.” Por recorrer a citações de pessoas que já cá não estão para as desmentir ou confirmar, o cronista do DN, Ferreira Fernandes, invocando a conotação do buraco da fechadura na capa, afirma: “O JAS espreitou menos do que cavou em campas.” Paulo Baldaia, diretor daquele diário, justificou a manchete que dava honras de primeira página ao livro (a que chama “a coisa”), com o facto agravante deste ser apresentado pelo ex-primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho [este, entretanto, pediu para ser “desobrigado” e a editora acabaria por cancelar o evento]: “O que está escrito na ‘coisa’ é da exclusiva responsabilidade de Saraiva, mas Passos Coelho tem de saber que fazer a sua apresentação o compromete. Foi por ter o líder do PSD nesta história que o DN fez manchete na sexta-feira.” Henrique Monteiro ironiza: “Passos Coelho faz bem em apresentar a obra. De preferência o líder do PSD deve fazer [a JAS] algumas confidências sexuais, se é que as tem. Mesmo que não as tenha, não faz mal; o autor inventa-as no seu próximo livro que se chamará ‘EU, EU, EU e aquele gajo que foi primeiro-ministro cujo nome não me ocorre, mas era qualquer coisa Coelho’.”
Será que os políticos vão continuar a contar-lhe segredos? “Penso que sim”, acredita JAS. ‘‘E, se continuarem a contar, eu voltarei a escrever um livro sobre os seus segredos daqui a dez anos. Repare, este foi um ato de total liberdade. Se eu tivesse escrito, na época, que Eanes admitia renunciar isso seria bombástico, e ele não me pediu reserva…” Houve capítulos, sobretudo os referentes a pessoas fragilizadas que lhe estavam próximas, que, confessa, escreveu “com pinças”. Redigiu, diz, com “mixed feelings”. Admite que pode vir a arrepender-se, como lhe aconteceu quando escreveu a crónica que associou a cegueira política de Cunhal à sua cegueira física. “Não o devia ter feito”, afirma no capítulo dedicado ao ex-líder comunista. Mas logo a seguir acrescenta: “Só o escrevi por saber que ele não podia ler o texto.” E, em seguida, explica a sua lógica: “Se alguém lho lesse, seria essa pessoa a responsável por dar-lhe a conhecer a minha observação cruel.”
(Artigo publicado na VISÃO 1229, de 22 de setembro)