O Governo provém da Assembleia da República – e é perante a Assembleia que responde politicamente”. As palavras de António Costa na tomada de posse do XXI Governo de Portugal até podiam parecer uma verdade de La Palisse naquele novembro de 2015. Mas nunca como antes foram tão verdadeiras. Que o diga Tiago Brandão Rodrigues, o ministro da Educação, que quando viu os colégios virem para a rua manifestarem-se contra o fim dos contratos de associação teve na geringonça parlamentar o seu maior seguro de vida. Nem o facto de ser aquele que mais tem ignorado o Parlamento, na hora de responder às perguntas e requerimentos enviados, foi suficiente para travar o apoio da esquerda. E o País assistiu a algo inédito: Jerónimo de Sousa e Catarina Martins a elevar a voz para defender um ministro da Educação. Nada seria como antes no hemiciclo da Assembleia.
PCP e BE estavam firmes no apoio ao Governo do PS e nem as divergências sobre a resolução do Banif ou a cautela em relação ao Programa de Estabilidade e Crescimento, que acabou por não ir a votos, foram suficientes para beliscar a nova maioria de esquerda. Muitos duvidaram de que a geringonça chegasse ao verão de 2016. Enganaram-se. A primeira etapa está superada. Na semana passada, os deputados reuniram para o último plenário desta sessão legislativa sem percalços de maior. Mas o grande teste à geringonça chega agora: é o Orçamento do Estado para 2017 e a pressão de Bruxelas para novas medidas mais restritivas.

Costa não pode respirar de alívio. Mas pode vangloriar-se por ter tido um Parlamento praticamente imaculado, no que toca a divergências na “geringonça” em que assenta o seu poder. Um Parlamento que demonstrou, dizem várias personalidades ouvidas pela VISÃO, uma coesão muito superior à necessária para garantir a estabilidade do Governo. A dúvida é se essa coesão se manterá para a votação do Orçamento do Estado para 2017. Um orçamento em que os partidos da esquerda não poderão assentar as suas promessas apenas na reversão de medidas e na devolução de direitos, mas em que terão que se entender em relação a medidas novas. E, mais difícil ainda, um orçamento que nascerá sob o signo da pressão de Bruxelas, com ou sem sanções, e em que as restrições serão maiores do que aquelas que Jerónimo, Catarina e o próprio Costa podiam antecipar.
Mas já vamos ao futuro. Na semana em que o Governo de António Costa cumpria a primeira sessão da legislatura, fomos saber que sensação deixava o Parlamento em personalidades dos vários espetros ideológicos. Bagão Félix, ex-ministro do CDS, vê a maioria parlamentar com “surpreendente coesão”. “Mais coesa do que seria de supor, face às claras divergências doutrinárias que realmente existem entre a esquerda mais radical e o PS”, considera o social-democrata Rui Rio. “Uma maioria que correspondeu a uma dinâmica nos grupos parlamentares e nas direções dos partidos muito mais coesa do que seria necessário, para manter o Governo”, assume o ex-ministro do PS Paulo Pedroso. “Um Parlamento onde o diálogo à esquerda foi sempre feito com muito cuidado, ponderação e recato”, sublinha a antiga deputada do Bloco Ana Drago. Mas, sobretudo, uma maioria “que não é de gente que cá tenha chegado anteontem – sobretudo no que toca ao PS e ao PCP– e que quando disse que era para cumprir, era mesmo para cumprir e para desenvolver e aprofundar”, garante o comunista Ruben de Carvalho.
O ministro que mais ignorou
1º Tiago Brandão Rodrigues (Educação) – 64% das perguntas e requerimentos por responder
2º Mário Centeno (Finanças) – 51%
3º António Costa (PM) – 45%
O ministro mais fiscalizado
Adalberto Campos Fernandes (Saúde) – 639 perguntas e requerimentos recebidos
O ministro mais cooperante
Maria Manuel Leitão Marques (Presidência) – Só tem uma pergunta por responder e ainda está dentro do prazo
fonte: Assembleia da República (dados disponíveis a 10 de Julho)
É, portanto, um Parlamento que assumiu, de facto, a posição central que Costa lhe deu naquele novembro de 2015, quando discursou no Palácio da Ajuda perante Cavaco Silva? Em parte sim, dizem Ana Drago e Paulo Pedroso. Mas para os ex-deputados do PS e do Bloco, o sucesso deste ano parlamentar não se pode imputar exclusivamente ao trabalho desenvolvido na Assembleia da República. Essa coesão das esquerdas, que todos eles destacam, vai “muito para além” do hemiciclo. Centrou-se muito nos corredores de São Bento, nas direções partidárias e teve como pivot Pedro Nuno Santos, o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares.
Foi do seu gabinete na Assembleia que partiram todas as negociações que permitiram, como diz Ana Drago, que “quando os dossiers chegassem ao debate parlamentar já viessem negociados e discutidos, mostrando uma frente de esquerda muito unida no combate às críticas da oposição de direita”. Negociações que, ao contrário do que muitas vezes se faz em governos de coligação, não foram feitas entre colegas de Executivo, ou seja, entre ministros de um ou outro partido que suportam o poder. Na geringonça, as negociações fazem-se entre líderes partidários e, muitas vezes, entre líderes parlamentares. Sempre com Pedro Nuno Santos no centro. E com espaços de cooperação bilaterais. PCP e BE não se sentam à mesma mesa. Mas sentam-se ambos à mesa do PS e do Governo. E isso tem sido suficiente para “desenvolver mecanismos de diálogo partidário sem precedentes”. como conta Paulo Pedroso.
Um trabalho “fora dos holofotes” que, como diz o ex-ministro de Guterres, permitiu “uma cooperação mais fácil e uma vontade dos parceiros de não serem responsabilizados pelos problemas”. E até vai mais longe: “Há uma interpretação das circunstâncias, pelos partidos da geringonça, que é surpreendente, até pela lealdade recíproca que manifestaram nas divergências e nas convergências”. Será mesmo “lealdade”? Rui Rio faz uma leitura um pouco diferente. Para este senador da direita, aquilo a que se assistiu neste ano parlamentar foram algumas “vendas da alma ao diabo, sendo a mais notória a do dossier da CGD”. Mas também se assistiu a um PS que “teve de acelerar o que popularmente se designa por ‘acabar com a austeridade’, o que pode trazer “desequilíbrios macroeconómicos”.
Um parlamentarismo passageiro?
Ao fim de um ano de Parlamento maioritariamente de esquerda, fica a questão: até quando será capaz Costa de segurar o apoio do PCP, BE e Os Verdes? Para Pedroso, é evidente que no horizonte se projetam dois testes decisivos: o Orçamento do Estado para 2017 e as autárquicas do próximo ano. O primeiro corresponde “à hora da verdade”. Porque os constrangimentos vão ser muito superiores e “as plataformas dialogantes terão de se fazer sobre medidas novas, que podem jogar com as crenças profundas dos partidos”, explica o ex-deputado socialista. Daí que Rui Rio se questione se “BE e PCP serão capazes de ultrapassar o seu discurso habitual de fraca adesão à realidade e de assumir uma postura mais responsável, mas também menos popular e menos coerente com todo o seu passado”.
E porque “os problemas e as contradições não desaparecem de varinha mágica”, como lembra Ruben de Carvalho, o comunista não arrisca nenhuma “previsão” sobre a duração da geringonça. Coloca-se antes na posição que o PCP tem assumido desde o início dos acordos: esperar para ver, sem nunca se comprometer com cheques em branco. Sinal disso deu já esta semana Jerónimo de Sousa, ao confirmar, num comício na Foz do Arelho, que o PCP “só se comprometeu a examinar” a proposta de OE/2017, não garantindo “votar a favor de uma coisa que nem sequer conhece”.
Se o Governo conseguir aprovar este documento decisivo, Paulo Pedroso acredita que depois será uma questão de “bom senso” até ao final da legislatura. Pelo meio, os partidos terão que “conseguir montar as suas batalhas locais nas autárquicas sem que Governo e Parlamento sofram com os estilhaços vindos de confrontos indefinidos”.

O Parlamento que teve, como nunca, os holofotes mediáticos e políticos concentrados em si. E “goste-se ou não, a constituição de uma maioria governamental que estava delimitada a 80% do eleitorado (PSD, PS e CDS) abrange agora todos os assentos parlamentares”, como sublinha Bagão. Uma realidade que colocou a nu a ideia de que “faltam pessoas de referência doutrinária e respeitável independência”, funcionando a Assembleia “demasiado em função de uma minoria de deputados e com pouco grau de afirmação das suas próprias convicções”. Rui Rio tem, por isso, uma “dúvida”: se estes partidos que agora foram colocadas no arco das “forças políticas responsáveis e capazes de colaborarem no exercício do poder” serão efetivamente “capazes de contrariar a sua própria natureza e deixarem o permanente bota-abaixo, abandonarem a demagogia, e assumirem responsabilidades, muitas vezes, impopulares?” A resposta, diz, virá em breve. Ou os acordos “sucumbem num horizonte curto” e “tudo voltará ao princípio e continuaremos a ouvir o BE e o PCP com os seus discursos de sempre”, ou a geringonça aguenta-se até ao fim e, admite o antigo autarca do Porto, teremos um BE e um PCP com “uma evolução parecida com a do Syrisa na Grécia”.
Do poder para a oposição
Para já, os partidos têm cumprido os compromissos e Costa tem sido capaz de “convencer a esquerda a seguir uma estratégia que é autónoma, mas tendo em consideração os constrangimentos da participação no Euro”. Uma estratégia que deixou a direita “em negação, num primeiro momento”, assume Rui Rio. Apeados do poder por uma maioria parlamentar que não venceu as eleições legislativas, PSD e CDS tiveram dificuldades em “interiorizar” que já não eram governo, diz Bagão referindo-se sobretudo aos sociais-democratas. Mas isso já lá vai.