Stefan Zweig (1881-1942) chega ao Brasil em agosto de 1936, descendo do luxuoso paquete Alcântara. À sua espera, tem repórteres no passadiço de primeira classe.“Elegante, bem cuidado, ar delicado e melancólico”, assim descrevem o escritor de sucesso, 53 anos, chapéu Gelot na cabeça. “Sinto-me feliz por ter abandonado a incerteza, a inquietação e a insegurança da Europa”, declara.
Zweig foge da Áustria fascista, fascinada por Hitler, tendo conseguido que o seu nome não figurasse na lista de passageiros… Na biografia Morte no Paraíso (2004), o autor Alberto Dines descreve uma dupla realidade: “Recebido com todas as honras, outros têm menos sorte. No dia anterior, um grupo de sete judeus fugidos da Checoslováquia aportou a bordo do Alsina. Receção diferente: com documentação incompleta, a polícia deu-lhes três dias para regularizar os papéis, caso contrário seriam recambiados aos países de origem(…). O Alsina ainda está no porto, entrará na história como campo de concentração flutuante.” Zweig, esse, é levado a galas e jantares com figuras públicas. Em carta a um amigo, muito antes do suicídio cometido em terras brasileiras, revela-se lisonjeado: “Um conto de fadas…”, diz.
O país acolheu, então, muita gente fugida a tiranos e guerras. Como Clarice Lispector (1920- -1977), escritora que o tradutor Gregory Rabassa descreveu como “aquela pessoa rara que se parecia com Marlene Dietrich e escrevia como Virginia Wolf”: “Nascida a milhares de quilómetros do Brasil, no meio de uma terrível guerra civil, com a sua mãe a ser condenada à morte por um inqualificável ato de violência, os antecedentes de Clarice foram inimaginavelmente violentos e miseráveis”, descreve o biógrafo Benjamin Moser em Clarice Lispector – Uma Vida (2009). Clarice dizia nada saber sobre a Podólia (na Ucrânia) natal: “Lugares sujos onde, até à viragem do século XX, a maior parte dos judeus do mundo inteiro vivia”, lê-se aí. Adveio a Primeira Grande Guerra, os pogroms, a fuga. Moser evoca uma travessia do Atlântico na terceira classe do navio e na companhia de outros 25 imigrantes, que ecoa na atualidade.
“A sujidade e o fedor, que era acentuado pela ventilação deficiente, criavam, na maioria destes navios, um ambiente que um relatório americano descreveria como praticamente insuportável. Uma investigadora americana, disfarçada de camponesa da Boémia, descreveu os minúsculos alojamentos onde os imigrantes eram empilhados, uns em cima dos outros.” Quando os Lispector desembarcam na doca de Maceió, veem uma réplica da Estátua da Liberdade.
Para responder à pergunta de um leitor sobre a nostalgia na sua escrita, a chilena Isabel Allende, 74 anos, escreveu O Meu País Inventado (2003): “Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que finalmente tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu.
” O seu pai era primo do futuro presidente Salvador Allende. Após o golpe militar de Augusto Pinochet, em 1973, a autora recorda o medo “como um permanente sabor metálico na boca”. Tudo foi descrito em A Casa dos Espíritos (1982) e Paula (1994).
“Quando senti que a repressão era como um nó corrediço à volta do meu pescoço, fui-me embora. Vi mudar o país e as pessoas. Tentei adaptar-me e não chamar a atenção, como me pedia o meu avô, mas era impossível, porque na minha condição de jornalista sabia demais”, contou Isabel. E porque protegia fugitivos desesperados, recebendo-os em casa ou ajudando-os a saltar muros de embaixada. “Supunha que se fosse presa poderia explicar que o fazia por razões humanitárias; claro que andava na lua. Cobri-me de equimoses dos pés à cabeça, não conseguia dormir, bastava o ruído de um automóvel para ficar a tremer durante horas.” Em 1975, fugiu para a Venezuela, levando um punhado de terra do seu jardim. “De uma coisa estou certa: não seria escritora se não tivesse vivido a experiência do exílio.”
“A luta da memória”
Poeta, dramaturgo e romancista, o cubano Reinaldo Arenas (1943-1990) teve outra sorte: recebeu ordem de prisão em 1974. Gay assumido, foi acusado de “desvio sexual” de jovens e de publicar no estrangeiro sem autorização, tendo sido torturado e censurado pelo governo de Fidel Castro. No relato autobiográfico Antes que Anoiteça (1990) daria conta das transformações do país. Arenas abandonaria Cuba em 1980 num barco chamado… Lázaro. Doente (com sida), suicidar-se-ia em Nova Iorque, deixando uma carta-manifesto: “Devido ao estado precário da minha saúde e a terrível depressão sentimental que sinto por não poder seguir escrevendo e lutando pela liberdade de Cuba, ponho fim à minha vida. Nos últimos anos, apesar de me sentir muito doente, pude terminar a minha obra literária na qual trabalhei durante 30 anos. Deixo como legado todos os meus terrores, mas também a esperança de que Cuba será livre… Eu já o sou.”
Outro cubano, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), Prémio Cervantes 1997, deixou também material póstumo: Corpos Divinos contempla os anos pré-revolução e inícios castristas, “autobiografia velada” cuja introdução anuncia que “todos os personagens são reais e a história aconteceu”. Exilado em Londres em 1965, nunca superou a mágoa da distância. Prémio Nobel da Literatura em 1929, Thomas Mann (1875-1955) procurou abrigo na Suíça e nos EUA, abandonando a Alemanha por causa de uma carta: a viajar pela Europa na companhia da mulher judia, a irmã anunciou-lhe que os nazis tinham vencido as eleições. Em A Montanha Mágica (1912-1924), o escritor narra um microcosmos europeu, pré-ascensão de Hitler: um sanatório perdido nos Alpes suíços, com pacientes de várias nacionalidades. E no romance Mário e o Mágico (1930), há ecos da condição dos refugiados na descrição da família em férias na estância balnear italiana Torre di Venere, em 1920, discriminada por ser estrangeira: a mesa da marquise é para “os clientes habituais.”
A sul-africana Nadine Gordimer, Nobel em 1991, não saiu do seu país mas foi perseguida pelo regime do apartheid e viu os seus romances serem banidos. Amiga de Nelson Mandela, militante do ANC, Gordimer escreveu contra a segregação racial: The Lying Days, o primeiro romance, algo autobiográfico, é sobre o despertar político de uma jovem branca; A Gente de July (1981) descreve assassinatos de brancos perpetrados por negros em revolta. A perseguição política é o combustível de muitos exílios: Milan Kundera, 87 anos, vive em França desde 1975, quando abandonou a Checoslováquia. Crítico da invasão soviética de 1968, viu ser-lhe retirada a cidadania. Quatro anos depois, escrevia O Livro do Riso e do Esquecimento (1979) sobre a resistência dos checos ao regime comunista. “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”, diz.
Distinguido pela sua “lucidez amarga” pela Academia sueca em 2000, Gao Xing-Jian, 76 anos, autor de A Montanha da Alma (2002), hoje cidadão francês, tem os seus trabalhos banidos na China natal, desde a publicação do texto Fugitives (1989), em que abordou os protestos da Praça Tiananmen. O pai de Vladimir Nabokov (1899-1977), secretário do Governo Provisório Russo, após a Revolução de Fevereiro em 1917, foi morto a tiro por um monárquico. Em Fala, Memória (1947), o escritor relatou o que era a Rússia da sua infância e a fuga da família para a Crimeia em 1919. E no romance O Dom (1938) ele aborda diretamente “os desalentos e a glória do exílio”. Uma história sem fim à vista.