Numa das suas idas recentes ao mercado de Peso da Régua, Pedro Lemos encantou-se com o feijão-branco na banca de leguminosas a granel. “A senhora julgava que eu queria levar um quilo, mas comprei 40 [risos]. Já andava a pensar pôr na carta a feijoada de sames de bacalhau e tem corrido que é uma maravilha”, conta-nos no terraço do restaurante Casa dos Ecos, com vista para as vinhas na Quinta do Bomfim, no Pinhão, aberto pelo chefe de cozinha no verão passado.
São sete da tarde de um dia de julho e, a esta hora, o sol dá outro verde às videiras, o rio também ganha diferentes tonalidades e tanto a sala como o terraço deste antigo armazém de 1901 começam a encher-se para o jantar. Lá fora, um dos dois fornos a lenha tem a cozer a versão de folar transmontano, sem enchidos, que há de chegar à mesa acompanhado com pão de Favaios, broa de milho e azeite virgem extra Quinta do Ataíde, da família Sygminton, proprietária do Bomfim.
Nem era preciso Pedro Lemos dizer-nos que se sente em casa neste projeto que o trouxe de volta à região duriense, 13 anos depois de ter gerido a cozinha na Quinta da Romaneira, e que vem conciliando com o seu restaurante homónimo na Foz do Porto, com uma Estrela Michelin. “Ganho anos de vida quando aqui venho”, confessa. “Das melhores lembranças que tenho do Douro é a de comer com os caseiros da minha madrinha, em Santa Marta de Penaguião. É isso que quero servir aqui: o receituário tradicional com a matéria-prima o mais local possível”, afirma.
A mercearia do restaurante está disposta na prateleira à vista dos clientes, tal como as travessas de barro que vão à mesa com doses generosas para partilhar. “Costumo dizer que somos os caseiros do Bomfim”, brinca. “Oitenta a 90% do que temos é de produção local.” As carnes são de animais criados na região: o cabrito (servido todos os dias com arroz de forno, grelos e batatas assadas), o novilho, o pato para o arroz “feito à moda do Douro”, a truta do rio (de Cinfães), os milhos (de Trás-os-Montes) que acompanham as costelas em vinha de alho, ou os citrinos apanhados ali na quinta que aromatizam a torta com infusão de laranja ou o Porto tónico Graham’s Blend nº 5.
“Esta é a base da cozinha, foi com ela que eu cresci. É a nossa cultura, o nosso património. Devia ser imperativo aprendê-la nas escolas”, salienta o chefe de 42 anos. Daí que a carta acabe por ser uma espécie de “viagem de memórias”. Dele e de quem aqui vem. A sopa à lavrador e de tomate-coração-de-boi, o polvo à lagareiro, o bacalhau com migas, o carapau de escabeche (em vez de frito é fumado no forno) ou mesmo os legumes assados lembram-lhe “aquele aroma das lareirinhas e das fogueiras no outono que conferem à comida um sabor diferente”. Uma horta a 100 metros da Casa dos Ecos e um outro restaurante “com uma cozinha distinta”, junto à adega do Bomfim, são os próximos projetos de Pedro Lemos no Douro, aonde vai “recarregar baterias” três vezes por semana.
QUILÓMETROS POR UM ARROZ CALDOSO DE PEIXE
A região – classificada há 20 anos como Património Mundial da Unesco – já não se resume a vinhas, adegas ou a provas de vinho. “Tenho clientes que vêm de propósito do Porto para comer os secretos de porco ibérico ou o arroz caldoso de peixe”, conta-nos Pedro Cardoso, chefe do Cozinha da Clara – o nome é uma homenagem à avó de Sophia Bergqvist, a família inglesa dona da Quinta de La Rosa, para lá da vila do Pinhão. Com uma vista privilegiada sobre o rio, desde que abriu em 2017 que o restaurante não foge da cozinha tradicional. “O cabrito fica toda a noite a cozer em baixa temperatura para estar tenrinho como o que comíamos em casa dos avós, vai depois a tostar debaixo da salamandra e é servido com grelos e batata assada”, explica o chefe, de 31 anos. “O que os estrangeiros gostam é da comida portuguesa com um bom vinho. Se quiserem comer sushi, que vão ao Japão”, atira.
E na carta, embora possamos encontrar um magret de pato com escalope de foie gras, as atenções recaem no bacalhau confitado em azeite La Rosa, na barriga de leitão, nos rissóis caseiros ou até mesmo nos gelados artesanais que a equipa de pastelaria aprendeu a fazer com a fruta da quinta. Não faltam, claro, os vinhos ou a cerveja artesanal Quinta de La Rosa para acompanhar a refeição. Durante a tarde, o Tim Terrace serve hambúrgueres, grelhados e pizzas para momentos mais descontraídos. “Devemos ser a única quinta do Douro com pizzaria”, ri-se. Pai há dois meses, nem os 45 minutos entre curvas e contracurvas desde Vila Real, onde vive, demovem Pedro Cardoso: “Nunca quis ir para Lisboa. Acredito na região e o resultado está à vista.”
DA HORTA PARA A MESA
Uma vez por mês, Miguel Castro e Silva troca o bulício de Lisboa por Ervedosa do Douro, na margem esquerda do rio, em São João da Pesqueira. Desde 2019 que é responsável pelo restaurante do Ventozelo Hotel & Quinta, propriedade da Gran Cruz pela qual se apaixonou em 2015 quando “andava a provar uvas” para os seus vinhos. “É um caso exemplar pela diversidade e recuperação do património, onde se quer deixar a Natureza voltar a brotar”, aponta o chefe de cozinha. Antes de abrir a Cantina de Ventozelo, demorou um ano a pesquisar as influências gastronómicas desta zona, entre a Beira Alta, Trás-os-Montes e o Douro. “Nesta região, havia alguma pobreza e tinham de ser inteligentes a gerirem os produtos.” Daí que sustentabilidade e o combate ao desperdício sejam práticas levadas muito a sério em Ventozelo.
A carta privilegia os legumes da horta, onde crescem curgetes e abóboras de todos os tamanhos, alfaces, feijão-verde, cenouras, pimentos, beringelas, acelgas, ervilhas de quebrar (“as melhores que comi na vida”, diz Castro e Silva), e a fruta do pomar: pêssegos, figos, maçãs, kiwis… O mel e o azeite também são da quinta, e até os cogumelos vêm da mata aonde têm voltado os corsos e os javalis. Fazem pickles de nabo e de beterraba, compotas (cereja, tangerina, laranja com limão), conservas, vinagre de vinho do Porto. “Só não pretendo fazer pão. Compro-o na Díbia [padaria de Vila Real].”
À entrada do restaurante, com um terraço magnífico sobre o Douro, um quadro de ardósia tem apontada a ementa do almoço. No dia da nossa visita, servia-se caldo-verde com chouriço, bola de sardinha, salada de curgete e requeijão, meada de barrosã e um bolo borrachão que nos fez recuar à infância. À carta, provam-se as tais pesquisas de Miguel Castro e Silva pelo receituário português: bacalhau à lagareiro com batata a murro e couve, posta de vitela barrosã com molho vilão (“compramos a peça do animal inteiro e desmanchamo-la aqui, para que não haja desperdício”), rancho de legumes, cuscos transmontanos e cabrito assado, ao domingo. “É o Douro todo numa quinta”, aponta. Quase como antigamente.
DE BRAÇO DADO COM O VINHO
Seguimos para Covas do Douro, concelho de Sabrosa. As curvas não dão descanso, mas a paisagem que se vê da janela do carro com as vinhas a perder de vista e o rio lá em baixo a correr mansinho, valem cada quilómetro. A Quinta Nova Nossa Senhora do Carmo, propriedade de Luísa Amorim, foi a primeira a abrir o enoturismo, em 2005, com alojamento e um restaurante na casa senhorial oitocentista. E que bem se está lá fora à mesa do Terraçu’s, com a esplanada coberta por uma ramada, o silêncio e a paisagem vinhateira em frente. André Carvalho, 28 anos, toma conta dos tachos e da horta, projeto antigo com aromáticas (tomilho, orégãos, alecrim, salsa) e tomateiros coração-de-boi que vão parar ao prato.
“A infância em Lamego, o vinho e a região”, afirma o chefe, é o que o influencia na cozinha. Neste verão, serve as suas criações mais recentes: os cuscos (de Vinhais), a truta do rio fumada com junco da ribeira da Pisca e laranjas da quinta, o gaspacho de tomate, o lombo de vitela transmontano com batata confit inspirada “nas batatas assadas da avó”, ou o pudim Abade de Priscos com sorvete de romã e favo de mel. “A ideia é que as pessoas se sintam em casa e que levem daqui memórias.” Os vinhos Quinta Nova estão sempre na ementa e, por vezes, podem ser eles a comandar a criação de um prato, como sucedeu com a galinha do mato recheada com pistácio, truta e cogumelos, cujos sabores tiveram em conta a densidade de aromas do Mirabilis Tinto.
Também na Quinta do Portal, em Celeirós, Sabrosa, o restaurante de cozinha de autor contemporânea tem evoluído de braço dado com os vinhos produzidos pela família Mansilha. À mesa, quase a tocar os vinhedos, Milton Ferreira serve há 12 anos “experiências diferentes todos os dias” de acordo com a época. “Gosto de fazer as pessoas felizes”, diz-nos, no meio da conversa, o chefe de 31 anos que seguiu este caminho influenciado pelo pai (foi cozinheiro na Suíça), e tem um dos seus pratos vegetarianos com beterraba como finalista ao concurso 7 Maravilhas da Nossa Gastronomia.
E que felizes nos sentimos, realmente, depois de provarmos os peixinhos da horta com pequeninas flores de curgete e de cebolinho da quinta, o rabo de boi recheado com mousse de frango acompanhado de puré de pera e aipo ou o festim de framboesas e amoras, para sobremesa. Parte da fruta e dos legumes utilizados na cozinha criativa de Milton são colhidos ali mesmo, a poucos metros do armazém de envelhecimento da autoria de Siza Vieira. A provar, nota, que “a horta e a vinha andam interligadas”.
Mais adiante, em Lamego, Carlos Pires acaba de transformar a carta do restaurante situado no meio dos vinhedos na Quinta da Pacheca “na mais transmontana de todas”, confessa. O robalo com cuscos e carabineiro, o presunto bísaro, a truta com grão-de-bico, os milhos com costela de cordeiro – sabores que o chefe de 38 anos, nascido em Braga, conhece desde a infância –, juntaram-se às iguarias que lhe têm dado fama como o arroz de cabrito, o polvo à lagareiro ou o bacalhau com broa. “Há quem venha de propósito por causa do arroz de pato. Dizem que é o melhor do mundo”, conta orgulhosa a diretora-geral da Quinta da Pacheca, Sandra Dias. Brindemos, então, porque o vinho – sempre o vinho –, acompanha todas as refeições desta viagem pelas cozinhas que se estão a afirmar nas quintas do Douro.
GUIA DE VIAGEM
Casa dos Ecos > Quinta do Bomfim, Pinhão > T. 93 545 2975 > ter-sáb 12h30–21h, dom 12h30-16h
Cantina de Ventozelo > Ventozelo Hotel & Quinta, Ervedosa do Douro, S. João da Pesqueira > T. 254 732 167 > seg-dom 12h30-14h30
Cozinha da Clara > Quinta de La Rosa, Pinhão > T. 254 732 254, 93 146 1038 > seg-dom 12h30-15h, 19h-22h
Quinta do Portal > EN 323, Celeirós, Sabrosa > T. 259 937 000 > seg-dom 12h30-15h30, 19h30-21h
Terraçu’s > Quinta Nova Nossa Senhora do Carmo, Covas do Douro, Pinhão > T. 254 730 430, 96 986 0056 > seg-dom 12h30–14h30, 19h30-21h30
The Wine House Restaurant > Quinta da Pacheca, Cambres, Lamego > T. 254 331 229 > seg-dom 12h30-14h30, 19h30-21h30