Senhores passageiros, é favor apertarem os cintos de segurança, levantarem as mesas e endireitarem as costas das cadeiras. Dentro de momentos aterraremos no aeroporto da Portela, em Lisboa.” É assim que se chega à capital, vindo dos céus. Lá do alto, aterrando pelo sul, vêm-se as areias da Caparica, o estuário do Tejo, a Ponte 25 de Abril, a Torre de Belém, o Cemitério dos Prazeres e a Basílica da Estrela, as Amoreiras, as Avenidas Novas, a Segunda Circular… A Lisboa dos Descobrimentos e a do século XXI.
Aterra-se. Já é noite. O que esconderá esta cidade? “Lisboa, quem é tu?“. É este o nome do espetáculo que estreou a semana passada, dia 30, no Castelo de São Jorge. É um espetáculo multimédia, sem palavras a não ser as de Alexandre O’Neill, num fado cantado por Amália Rodrigues. Tudo o resto muitas e muitas imagens, dos painéis de S. Vicente ao último grito do graffiti é acompanhado por música instrumental portuguesa.
O espetáculo, que se propõe oferecer uma “experiência sensorial única”, ligando “passado e presente, tecnologia e criatividade, história e património”, será exibido na muralha do castelejo, de fim de março a meados outubro.
Quem quiser, poderá anteceder o espetáculo (marcado para as 21 horas ou 22 horas, dependendo de os meses) com uma dentada nos sabores tradicionais de Lisboa (em versão petisco ou mais VIP, à vontade dos espetadores – ver “Que sabores tem Lisboa?” no fim do texto).

Pedro e Bernardo, dois dos onze investidores do projeto
Fotos, factos e sonhos
Quando Bernardo Vilhena e Nuno Prata, da Culturproject (a que se juntou Pedro Fontainhas) lhe ligaram a falar do projeto, em meados de 2011, António Jorge Gonçalves pegou na máquina fotográfica e passou mês e meio a fotografar furiosamente a cidade.
Bernardo e Nuno tinham passado os últimos dez anos a fazer espetáculos (desde produções da Cornucópia aos 500 anos da cidade do Funchal). Em 2009, numa feira de património, no Porto, conheceram Teresa Oliveira (diretora do Castelo de São Jorge) e começaram a trabalhar na comemoração dos 100 anos do Castelo de S. Jorge como monumento nacional, que ocorreria no ano seguinte. Ficou logo o bichinho de olhar para o castelo para além das efemérides.
Quiseram, juntos, dinamizar o património, potenciá-lo. O Castelo de S. Jorge recebe um milhão de visitantes por ano e os programas noturnos foram eliminados, em 2012. Iniciativa privada não poderia calhar em melhor altura. Por outro lado, Lisboa está na moda, mas “a noite está restringida ao Bairro Alto e às casas de fado”, explica Bernardo. Havia espaço para outra coisa.
Teresa Oliveira ficou com fama de negociadora implacável e renhida defensora do rigor nos conteúdos. Foi assim que a António Jorge Gonçalves se juntou Gabriela Carvalho. António Jorge, lisboeta, desenha, faz banda desenhada, fotografia, música e arte pública, e já tinha trabalhado com Bernardo e Nuno. Gabriela é, entre outras coisas, doutorada em História de Arte, docente de património cultural e natural, gestão e programação turística e técnica superior da Câmara de Lisboa. “A Gabriela tem uma história sobre cada pedra”, descreve António Jorge.

A nova Lisboa pode recordar com este espetáculo visual alguns dos seus momentos mais marcantes
António Jorge Gonçalves
Na parede do seu atelier, já estavam fotos a mais. Até que leu Lisboa, livro de bordo, de José Cardoso Pires. “Foi um ponto de viragem. Percebi que escusava de procurar mais, de tentar fugir [ao que se dizia], porque Lisboa é assim mesmo: onírica.” Lá conseguiram organizar ideias, selecionar factos, escolher iconografia e, pouco a pouco, montar o projeto. Foram até buscar um mapa (do tempo de Fernão de Magalhães) à Austrália e um quadro de Lisboa pré-terramoto (descoberto em 2011) à Suíça.
Dos fenícios aos Dead Combo
Havia ainda que contar com a música. Instrumental. Lisboeta. De Luís Freitas Branco aos Buraka Som Sistema, passando pelos Cool Hipnoise ou Amália. Bernardo Sassetti e os Dead Combo compuseram originais para o projeto. Os Madredeus autorizaram a sobreposição da sua música com os Cool Hipnoise e os Dead Combo com canto gregoriano. Porque não? Afinal, “qualquer cidade é feita de camadas, de misturas”, justifica António Jorge.
Enfim, aterrando na Portela, temos 35 minutos para visitar a cidade, tal como António Jorge Gonçalves a mostraria a alguém que a visitasse. Da Portela vai ao Parque das Nações, onde estão obras emblemáticas como a estação de Calatrava, a pala do Siza, o Pavilhão Atlântico, a Ponte Vasco da Gama. Passamos pelo porto, o cais, gruas, contentores, pescadores. Metemo-nos no Metro e mergulhamos no rio… ou no fundo do mar. Saímos no Terreiro do Paço e visitamos os fenícios na sua Allis Ubbo, os romanos na Olissipo, os árabes na Luxbuna, reconquistamos Lisboa ao lado de Martim Moniz e recolhemos S. Vicente e os corvos da sua nau. Lisboa vai mudando, crescendo.

António Jorge passou um mês e meio a fotografar Lisboa
É uma cidade de comércio e turismo, que viveu autos-de-fé mas implantou a tolerância. É boémia, vaidosa, poética, fashion, onde passeamos de elétrico encosta acima, encosta abaixo, do Bairro Alto à Madragoa, até às Amoreiras.
É a cidade das coisas simples: do aqueduto onde as águas correm livres e do céu que faz chover a flor do jacarandá. E da monumentalidade: os azulejos, os coches, os Jerónimos, a Torre de Belém que nos liga ao resto do mundo. É a cidade da passarola. Do terramoto e do renascimento das cinzas. Do regicídio e do 25 de abril. Disto, e muito mais.
Lisboa, quem és tu?
30 Mar-15 Out, Seg-Dom 21h (Mar-Abr, Set-Out), 22h (Mai-Ago) Dur. 35m. > 6 anos €15, €29 (bilhete+sabores de Lisboa), €65 (bilhete VIP + jantar na Casa do Leão) lisboawhoareyou.com
Antes do espetáculo, podem provar-se sabores de Lisboa num jantar VIP (sentado à mesa e guardanapo de pano, na Casa do Leão/Pousadas de Portugal) ou num jantar de petiscos, metidos numa caixa de cartão e degustados no “parque de merendas” com uma das melhores vistas de Lisboa: a muralha do castelo, àquela hora em que o sol se põe.
Que petiscos são esses e de onde vêm?
Peixinhos da horta Na Lisboa da Idade Média, em vez do peixe e do camarão, fritava-se o feijão verde plantado nas almoínhas mouras. O nome vem dos piqueniques oitocentistas e das idas às hortas dos arredores de Lisboa.

Pataniscas Também leva a farinha, ovo e o vinho branco dos peixinhos da horta, mas em vez do feijão verde, usam-se aparas de bacalhau.
Pastéis de bacalhau Atribuídos aos galegos residentes em Lisboa que, nas suas tabernas, juntavam ovos com clara batida em castelo e pimenta branca às sobras de batatas e de bacalhau.
Empadas de galinha Originárias do Alto Alentejo, conquistaram o lisboeta pelo requinte da apresentação. À época, eram a base ideal dos piqueniques fora de portas.

Pastéis de massa tenra O hábito do pastel vem dos romanos, mas o pastel de farinha bem trabalhada e fina vem das Beiras, conquistando Lisboa nos tempos de crise em que se cozinhava com restos de carne de vaca, galinha ou borrego.
Pastel de nata Herança dos frades Jerónimos, junta o folhado estaladiço com o creme à base de ovos, açúcar e natas. Especialidade da Estremadura, atribui-se a sua origem a Lisboa pela instituição, no início do sec XIX, da fábrica dos pastéis de nata de Belém, fiel depositária do segredo da receita conventual.
