Se há medicamento polémico é o Ozempic, o antidiabético que entrou para o mercado em 2018. Um fármaco revolucionário que usa semaglutido, o princípio ativo que mimetiza os recetores da molécula GLP-1.
Além de tratar a diabetes tipo 2, rapidamente se percebeu que, ao atuar no sistema nervoso central, e também diretamente no tubo digestivo interferindo na velocidade do esvaziamento do estômago, o Ozempic promovia perdas de peso – algures entre 5% e 20% dos quilos acumulados – superiores a outros medicamentos antes estudados e receitados para tentar controlar a obesidade.
Entretanto, nos EUA e no Reino Unido, as autoridades de saúde aprovaram já o semaglutido para a perda de peso. Esse medicamento chama-se Wegovy e pertence à mesma farmacêutica que criou o Ozempic, a dinamarquesa Novo Nordisk. Está aprovado pela Agência Europeia de Medicamentos, mas ainda não chegou a Portugal.
Esses medicamentos transformaram a forma como os médicos tratam a diabetes e a obesidade. Agora, são alguns psiquiatras nos EUA que estão a prescrevê-los para neutralizar o aumento de peso que muitas vezes acompanha quase todos os antipsicóticos e alguns medicamentos usados para tratar a depressão e a ansiedade.
O jornal The New York Times ouviu 13 das principais clínicas de saúde mental e departamentos psiquiátricos dos principais sistemas de saúde dos Estados Unidos e faz notar que não existe consenso quanto ao tema: seis afirmaram que já estavam a recomendar ou a prescrever medicamentos como o Ozempic aos seus pacientes; sete assumiram não estarem preparados para o fazer, invocando preocupações sobre a segurança e os efeitos secundários e expressando a convicção de que a prescrição de medicamentos para a perda de peso estava fora do seu alcance.
“Se há doença mental, se o tratamento quase invariavelmente vai levar a um aumento de peso, qual é o critério para não tratar o peso?”, questiona Gustavo Jesus, médico psiquiatra e diretor clínico da PIN – Partners in Neuroscience. “Sabendo que o excesso de peso e a obesidade é um problema que afeta as pessoas com doença mental grave tem que haver soluções. Não é justo dizer a uma pessoa que sofre de uma doença mental crónica que vai tomar um medicamento que a vai condenar à obesidade.”
Vamos começar por perceber a relação direta entre doença mental e aumento de peso. “Existe um risco maior de excesso de peso, de obesidade e de síndrome metabólica em pessoas com doença mental de vários tipos, incluindo a própria perturbação depressiva. Entre esses doentes com depressão, há um sub-grupo, que pela própria doença, pode ter um aumento de peso. Existe uma relação bidirecional, porque pessoas com obesidade e com aumento de peso também por mecanismos inflamatórios, têm uma maior tendência para estar com depressão. Portanto, existe uma relação próxima entre doença metabólica, incluindo aumento de peso, obesidade, diabetes e depressão”, explica o psiquiatra.
A relação estreita mais quando se fala de casos de doença psicótica (doença bipolar e esquizofrenia). “Sabemos que também existem alguns doentes que têm uma tendência de base de maior probabilidade de doença metabólica. Sabemos que pessoas com depressão se mexem menos, que em determinadas fases da doença podem comer mais ou menos. Deste ponto de vista há uma relação entre as próprias doenças e a probabilidade de aumentar de peso”, esclarece.
A situação tem-se modificado ao longo dos anos, com a evolução dos fármacos, e os organismos não reagem todos da mesma forma. Gustavo Jesus ajuda a separar as águas. “Algumas terapêuticas farmacológicas associam-se ao aumento de apetite, quer nos antidepressivos, quer nos antipsicóticos. Entre os antidepressivos mais antigos, alguns aumentam o apetite, logo podem aumentar o peso; dentro dos mais recentes, sobretudo os utilizados na atualidade, não há um impacto significativo nem no apetite, nem no ganho de peso. Nos antipsicóticos mais recentes existem algumas classes que aumentam muito o apetite, o risco de síndrome metabólica e o ganho de peso. Nos antipsicóticos em particular, no ranking da eficácia, sabemos que alguns dos fármacos mais eficazes disponíveis atualmente – tanto para o tratamento da esquizofrenia, como da doença bipolar – são fármacos que aumentam o apetite e o peso. Existem alternativas de fármacos antipsicóticos isentos de efeitos adversos a nível do peso. Mas, continuam a ser os fármacos que aumentam o peso os mais eficazes para os doentes mais resistentes.”
Alguns médicos, porém, argumentam que os pacientes não podem esperar. Muitas vezes as pessoas param de tomar medicamentos psiquiátricos ou recusam-se totalmente a iniciá-los porque não querem ganhar peso. Uma revisão de estudos, feita em 2019, descobriu que os pacientes ganharam mais de 7% do peso corporal com antipsicóticos e 5% com certos antidepressivos. Não há uma explicação clara para a ligação entre medicamentos psiquiátricos e aumento de peso, mas os especialistas teorizam que os medicamentos podem aumentar o apetite e retardar o metabolismo.
Aqueles que ganham peso significativo podem enfrentar um risco elevado de pré-diabetes, doenças cardíacas e outros problemas. Para muitos dos pacientes nos EUA os fármacos psiquiátricos e o Ozempic funcionam de mãos dadas.
No passado, alguns psiquiatras prescreviam medicamentos como metformina e liraglutida para ajudar os seus pacientes a combaterem o ganho de peso. Mas nenhum se revelou tão poderoso como os novos medicamentos.
“Em Portugal, estes fármacos para serem comparticipados pelo Estado só podem ser prescritos a pessoas com diabetes e índice de massa corporal superior a 35. Sou contra esta restrição porque se uma pessoa está a ser medicada para uma doença bipolar ou esquizofrenia, por exemplo, e está a ter uma boa resposta, está a ficar bem da sua doença mental, mas tem um aumento de peso por causa disso, devemos ter ao nosso dispor as armas terapêuticas que podem controlar esse efeito adverso e que permitem que a pessoa esteja saudável do ponto de vista mental e simultaneamente, do ponto de vista físico”, sublinha Gustavo Jesus.
Nos EUA, os psiquiatras que estão a prescrever o semaglutido examinam os seus doentes quanto a distúrbios alimentares, historial médico e composição corporal. Muitos exigem que os pacientes façam treino de resistência para neutralizar a perda potencial de massa muscular com os medicamentos. “Tem que haver critérios clínicos, seja da própria doença mental, seja da utilização do tratamento, seja do aumento de peso, que devem permitir a um número cada vez maior de pessoas com doença mental, o tratamento com estes fármacos para possibilitar uma estabilidade clínica, sem os efeitos secundários adversos ao nível do metabolismo e do peso.”
Ao outro lado do Atlântico têm chegado relatos de pacientes na Europa que tiveram pensamentos suicidas enquanto tomavam Ozempic. Os ensaios clínicos do Wegovy excluíram pessoas com pensamentos suicidas recentes, histórico de tentativas de suicídio, condições graves como esquizofrenia ou transtorno bipolar e aqueles que tiveram depressão nos últimos dois anos.
Nos ensaios clínicos do Saxenda, um medicamento mais antigo aprovado para perda de peso, um número ligeiramente maior de participantes que o tomaram tiveram pensamentos suicidas em comparação com aqueles que tomaram placebo, embora não houvesse evidências suficientes de que o medicamento fosse a causa. A Food and Drug Administration (FDA), autoridade reguladora do medicamento dos EUA, exige que medicamentos para controlar o peso atuamdo no sistema nervoso central alertem sobre pensamentos suicidas.
Outra preocupação dos médicos são os doentes com depressão e ansiedade, que podem estar em maior risco de anorexia, e com a toma do semaglutido poderão agravar ainda mais a sua situação física e mental.