Quando os efeitos de um medicamento chegam ao TikTok e as manas Kardashian o publicitam, o que pode acontecer? Esgotar rapidamente, um pouco por todo o mundo, visto ser um fármaco relativamente recente (2018). Pior, quando esses efeitos se prendem com uma perda acentuada de peso sem aparente esforço. Pior ainda quando esse medicamento está indicado, em primeiro lugar, para tratar casos de diabetes de tipo 2, e por isso é comparticipado pelo Estado. Mas não era de esperar que esses doentes ficassem sem acesso ao seu tratamento com semaglutido, por estarmos perante um caso evidente de prescrição off label (com um fim diferente para o qual foi estudado).
O princípio ativo semaglutido, em Portugal disponível com o nome comercial de Ozempic, da farmacêutica Novo Nordisk, existe em caixas de quatro doses, que custam 120 euros e dão para um mês. No entanto, desde março de 2021, os utentes só pagam 10% deste valor, quando apresentam uma receita na farmácia. Nos últimos sete meses, o Estado, sem contar, já gastou 18 milhões de euros com este medicamento.
Nos últimos sete meses, o Estado, sem contar, já gastou 18 milhões de euros com este medicamento
Trata-se de um medicamento que mimetiza as hormonas que regulam a sensação de saciedade, podendo promover perdas de peso de cerca de 15 por cento. Além deste benefício, ao atuar em diferentes mecanismos de controlo de peso, como atrasar o esvaziamento do estômago, o fármaco apresenta um perfil de proteção cardiovascular, reduzindo o número de eventos (sobretudo acidentes vasculares cerebrais) e de risco de morte cardiovascular em 26 por cento. Permite ainda uma redução da progressão da pré-diabetes para a diabetes.
“Se temos um medicamento que está a ser usado de forma desproporcionada, sem a indicação adequada, temos de introduzir mecanismos de correção”, disse Manuel Pizarro, ministro da saúde, em declarações aos jornalistas, no início desta semana. Esse mecanismo passará por “uma indicação clara no processo informático de prescrição. Obrigaremos [os médicos] a indicar com clareza que se trata do tratamento da diabetes tipo 2 porque é para esse tratamento que está indicado”, concluiu o governante. Neste momento, o mecanismo já está a funcionar: sempre que um profissional de saúde prescrever digitalmente este medicamento, saltará um pop up a questionar se o doente sofre realmente de diabetes de tipo 2.
Luís Cardoso, membro da direção da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), recorda que este é, atualmente, o tratamento mais eficaz disponível para a obesidade na Europa, estando a sua utilização aprovada pela EMA (autoridade europeia para o medicamento). No entanto, a dose disponível em Portugal, e em quase todos os países europeus, é de, no máximo, 1 miligrama, administrada semanalmente – para diminuir de peso, ela deve situar-se nos 2,4 miligramas.
Resultados iguais às cirurgias bariátricas
Atualmente, existem muitos estudos que comprovam a sua eficácia, quer em doentes com diabetes, quer na população em geral. “Há uma redução de cerca de 1,5% da hemoglobina glicada e uma perda ponderal de peso de 7%, no caso dos diabéticos”, resume o endocrinologista. Quando a dose é de 2,4 miligramas, a perda de quilos, em obesos, situa-se nos 15 por cento. “Estes valores, que em 40% dos doentes pode chegar aos 20%, não se conseguem apenas com modificação de estilos de vida. Só mesmo com recurso à cirurgia bariátrica [redução do estômago]”, conclui.
Além dos estudos que comprovam a redução evidente de peso em quem toma este medicamento, existe um outro em que os doentes, às 20 semanas, trocaram a dose para um placebo. Nesse grupo, nota-se uma perda no efeito da diminuição de peso, mas ainda assim ela mantém-se nos 5 por cento. Serão precisos mais anos de investigação científica para se perceber se a manutenção dos quilos obrigará a uma toma permanente deste fármaco.
O medicamento, que se toma por injeções subcutâneas de auto-administração, tem alguns efeitos secundários de índole gástrica, como vómitos ou diarreias, e por isso a sua administração deve ser prescrita de forma gradual, começando nos 0,25 miligramas – só ao terceiro mês se deve chegar à dose de 1 miligrama por semana.
O medicamento, que se toma por injeções subcutâneas,
tem alguns efeitos secundários de índole gástrica, como vómitos ou diarreias
Note-se que o Ozempic não é o único fármaco da família do semaglutido disponível em Portugal. O Victoza, um liraglutido com mecanismos semelhantes, existe em doses até 1,8 miligramas para tratar a diabetes e é comparticipado, embora não esteja demonstrada tanta eficácia no tratamento da doença. O Saxenda tem indicação para perda de peso, mas não beneficia da comparticipação estadual.
Nos Estados Unidos, já foi aprovado este ano um agonista duplo do recetor GIP/GLP-1 (Tirzepatide) – que otimiza a produção de insulina e aumenta a sensação de saciedade – que promove uma perda ponderal de 20% de peso e ainda consegue baixar em 2% a hemoglobina glicada. Espera-se que, em breve, chegue à Europa para ajudar a diminuir os números da obesidade e a melhorar ainda mais a vida dos diabéticos.
A farmacêutica Novo Nordisk também lançou uma alternativa às injeções, o Rybelsus, que é o nome para o semaglutido oral. Trata-se do primeiro GLP-1 em comprimido e está disponível nos EUA e no Brasil. A EMA aprovou-o em 3 de abril de 2020, com indicação terapêutica para o tratamento da diabetes, e foi adotado pela Bélgica, Croácia, República Checa, Dinamarca, Espanha, Estónia, Finlândia, Países Baixos, Itália, Letónia, Lituânia, Luxemburgo, Reino Unido, Suécia e Suíça. Por enquanto, Portugal continua sem o comercializar.
A SPEDM assume a obesidade como uma doença crónica e defende que a terapêutica médica deve ser comparticipada pelo Estado – no caso deste medicamento, os benefícios são claros do ponto de vista científico, com evidente impacto sobre a atividade clínica.
Contudo, a SPEDM alerta que, face ao número de doentes com obesidade, uma doença crónica que afeta cerca de 2,5 milhões de pessoas em Portugal, pode não ser possível cobrir toda a população. Neste sentido, a SPEDM “propõe que sejam definidas regras para a seleção dos doentes que possam ser elegíveis para este tipo de terapêuticas, para a definição de quem devam ser os prescritores das mesmas e ainda relativamente ao nível de comparticipação a adotar”.