Estamos cansados, com medo e cheios de dúvidas e angústias relativamente ao futuro. De repente, o dia-a-dia foi tomado de assalto por uma pandemia que de “de repente” já pouco ou nada tem. Os dias transformaram-se em meses e os meses em mais de um ano e o nosso cérebro luta por se adaptar constantemente a um desafio que parece não ter fim à vista.
O cérebro não é de ferro e pode já ter começado a dar sinais desta exposição prolongada a fatores de stress. Perdas de memória pontuais e o chamado “brain fog”, uma névoa que tolda o pensamento e nos torna mais lentos, são os principais sintomas de um fenómeno apelidado de “cérebro pandémico”.
Se há algum tempo se falava de languishing, um vazio entre a depressão e o bem estar, o cérebro pandémico é “uma espécie de vários languishings sobrepostos, que vão carregando, frustrando e causando deterioração cerebral”, explica o psicólogo clínico e psicoterapeuta cognitivo-comportamental Ricardo João Teixeira.
Mas, se o languishing estava relacionado com o humor, no caso do cérebro pandémico “estamos a falar do espetro do medo e da ansiedade que afetam a cognição”.
Na prática clínica, as queixas do fenómeno parecem ser transversais a jovens, idosos, estudantes, trabalhadores ou famílias. As notícias sobre a nova variante Delta e o número crescente de novos internamentos são alguns dos tópicos que Ricardo João Teixeira refere como os mais comentados ultimamente. “As pessoas ouvem as notícias e questionam-se, será quem vem aí uma nova vaga, será que não vem. Estão na dúvida, com medo e o cérebro está cansado de lidar com uma adversidade que é invisível, que desgasta e que, de facto, pode matar”.
O cérebro está cansado de lidar com uma adversidade que é invisível, que desgasta e que, de facto, pode matar
ricardo joão teixeira – psicoterapeuta cognitivo-comportamental
Se não fomos infetados pelo novo coronavírus, conhecemos quem tenha sido e, talvez, até quem tenha morrido. Há quem tenha medo de acabar num hospital, quem tenha medo de morrer, quem tenha medo da vacina, quem tenha medo da crise. E, na maior parte das vezes, tais medos são vividos em isolamento, a muito mais que dois metros de distância do próximo ser humano.
Stress, medo e isolamento “encolhem” o cérebro
Estes lapsos de memória, que muitos podem estar a sentir, têm uma explicação que não é nova: o stress. Sabemos que o stress, de uma forma geral, é pernicioso para a nossa saúde física, mas, quando experimentado de forma prolongada, é “extremamente desgastante”, como sublinha Ricardo João Teixeira e “condiciona o funcionamento da nossa memória”, como alerta o vice-presidente e secretário geral da Sociedade Portuguesa de Neurologia Filipe Palavra.
Em 2018, um estudo publicado na revista científica Neurology, associava um maior nível de cortisol – a hormona produzida pela glândula suprarrenal como resposta a uma reação aguda de stress – a uma pior memória e perceção visual, bem como menor volume cerebral total e menor volume de substância cinzenta nos lóbulos occipital e frontal.
“Se encharcarmos uma cultura de células em laboratório com cortisol, veremos que elas se dividem menos e desenvolvem menos dendrites e, portanto, do ponto de vista anatómico, essas células ficam como que limitadas”, explica Filipe Palavra.
O neurologista refere como tal facto “nos deixa perceber que quem não tem Covid, mas vive numa situação de stress crónico, com medo de vir a ter ou com toda a ansiedade social que se gerou em torno das notícias que vamos ouvindo, possa ter algumas dificuldades de memória”.
Esta afeção na memória é uma forma que o cérebro encontra para se proteger quando, perante uma situação de stress, se sente ameaçado. O exemplo mais comum são as famosas “brancas” que muitos alunos têm antes dos testes e exames.
Quem não tem Covid, mas vive numa situação de stress crónico, com medo de vir a ter ou com toda a ansiedade social que se gerou em torno das notícias que vamos ouvindo, pode ter algumas dificuldades de memória
filipe palavra – vice presidente da sociedade portuguesa de neurologia
Às alterações que se registam no cérebro quando está exposto a stress prolongado, associam-se ainda os efeitos socio-emocionais da pandemia, “nomeadamente o isolamento e o contacto com a solidão”, alerta Ricardo João Teixeira.
Segundo o psicólogo, os estudos do stress realizados na área da psicofisiologia têm mostrado que o isolamento social e a solidão afetam o cérebro. “O cérebro não se desenvolve, não se manifesta, não tem a mesma neurotransmissão nem a mesma neuroplasticidade. Temos até alterações a nível do próprio volume de regiões cerebrais, nomeadamente os lobulos temporais, frontal, occipital e sub-cortical”.
Recuperar a sanidade mental
Sem uma linha de chegada ainda à vista, por agora a guerra ao stress deve ser feita em pequenas batalhas, travadas diariamente. Ricardo João Teixeira relembra que, “quanto melhor estivermos, maior resiliência física, cerebral e emocional teremos” e deixa algumas ideias para lidar com os stressores pandémicos :
Descansar ao longo do dia
O descanso influencia os mecanismos de gestão do stress, por isso, Ricardo João Teixeira indica que não deve estar reservado apenas ao período da noite. Ao longo do dia, é importante definir breves períodos de descanso. “À hora de almoço, se possível, seria bom comer no exterior. Basta sair, sentar-se no jardim e almoçar”.
Praticar exercício físico
Vários estudos têm demonstrado como, a nível fisiológico, o exercício físico tem a capacidade de desencadear a produção de, entre outras hormonas, serotonina e endorfina, responsáveis por fazer-nos sentir mais felizes e relaxados. Se for realizado ao final do dia, pode interferir com os padrões do sono, devendo, por isso, ser privilegiada a faixa horária da manhã ou a hora do almoço.
Praticar o Mindfulness e a atenção plena
Quando trabalhamos a nossa interioridade temos mais consciência do que está a acontecer dentro do nosso corpo e esta consciência, como aponta Ricardo João Teixeira, é útil para tomarmos decisões. “Se nos sentimos muito abalados ou constrangidos, se calhar, teremos de fazer algo em relação a isso, mas, se nem tivermos essa consciência não conseguimos fazer nada”.
Não exagerar com os horários de trabalho
É importante aproveitar o melhor que o verão tem para nos dar, defende Ricardo João Teixeira, ou seja, as férias. “É importante as pessoas não trabalharem demasiadas horas, respeitarem-se, tentarem adaptar as férias ao contexto que vivemos e aproveitar os dias mais longos e quentes, apesar das adversidades”.