Se o seu jantar esta noite for peixe, muito provavelmente ele viveu ou reproduziu-se numa zona salobra. Estima-se que cerca de 70% das espécies com interesse piscatório passam uma parte do ciclo de vida neste tipo de sistemas, o que demonstra a sua importância em termos económicos. Mas não só.
As características únicas da mistura entre água doce e salgada proporcionam habitat a muitos tipos diferentes de pequenos invertebrados e algas, e, consequentemente, a diversas espécies de aves que deles se alimentam. A vegetação é também um elemento fundamental. Os sapais, comunidades de plantas que crescem nas margens, entre marés, são as áreas mais produtivas do planeta, em termos de biomassa, extremamente ricas em alimentos. Desempenham um papel essencial, porque têm uma função depurativa, capaz de precipitar metais pesados e anular a sua toxicidade são chamados “rins da terra “. Além disso, resistem a grandes teores de salinidade e contribuem para a estabilização das margens dos rios e controlo de cheias.
Por seu lado, o homem viu, desde há séculos, condições muito propícias para se fixar junto à foz dos rios. Nos estuários, situam-se os principais portos, e a eles se ligaram inúmeras actividades económicas que levaram as populações a estabelecerem-se à sua volta. Segundo o Plano Nacional da Água (PNA), metade da população de Portugal continental vive em torno das sete principais zonas salobras do País estuários do Tejo, Douro, Minho, Sado, Guadiana e rias de Aveiro e Formosa. Mas o que se sabe realmente sobre estas áreas?
ESTUDOS PRECISAM-SE
Até aos anos 80, não se efectuaram em Portugal investigações relevantes sobre sistemas salobros. A pioneira foi Maria José Costa, 59 anos, professora catedrática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e a primeira pessoa a doutorar-se em estudos de estuários, no País. Costumava andar regularmente sobre as águas do rio mais importante da Península Ibérica, mas hoje tem mais um papel de coordenação, já que lidera o grupo de zoologia do Instituto de Oceanografia (IO) da FCUL. Nesse âmbito, chefia a monitorização ambiental que o centro de investigação assegura, na zona de intervenção da Expo’98, situada entre a marina do actual Parque das Nações e a foz do rio Trancão.
A VISÃO acompanhou a última dessas saídas ao estuário do Tejo, efectuada por uma equipa constituída por dois biólogos do IO, além de Maria José Costa e um pescador que há anos se pôs à disposição dos investigadores. Desde 1997, que Manuel Mendes, 79 anos, lhes aluga o seu Manelito e, assim, integra a missão de perceber o que mudou no Tejo depois de as indústrias pesadas terem sido substituídas pelos jardins do Parque das Nações. Quatro vezes por ano, ajuda os cientistas a medir a temperatura e o oxigénio da água e a colher as amostras de lamas. A análise destes dados permite determinar o grau de poluição das comunidades de pequenos invertebrados que servem de base à cadeia alimentar.
Naquele dia soalheiro, o ritual repetiu-se largar a draga, guardar e catalogar a recolha em sacos de plástico. Sete vezes. A operação é simples, mas o espaço no barco não abunda. A meio da manhã, o Manelito está cheio de sacos de lama e água. Devíamos ter trazido botas de borracha…
A ida ao Tejo é mesmo o mais fácil; de volta ao “caótico” laboratório, começa a parte “penosa”. É preciso conservar as amostras em formol e rosa-de-bengala (um químico que dá cor a todos os seres microscópicos presentes) para, mais tarde e depois de inúmeros processos de depuração o Instituto inventou, até, um tanque para a realização desses processos analisar os organismos encontrados, um a um. Estes procedimentos demoram meses e são efectuados por vários investigadores do Instituto de Oceanografia.
Em face dos resultados obtidos, ao longo de uma década, Maria José Costa não hesita: “O ecossistema está claramente melhor, sobretudo no que respeita aos peixes.” Não se poderá dizer o mesmo dos estuários do Douro, Guadiana e Minho o PNA classifica-os como “mal conhecidos no seu conjunto” e identifica a falta de “planos hidrográficos actualizados, sobretudo nas zonas a montante”.
CORREDORES E MATERNIDADES
Nascer, viver ou passar – é para isto que as espécies de peixes utilizam os estuários. Uma das funções mais importantes é servirem de nursery aos peixes nascidos no mar, mas que vivem e se alimentam na foz dos rios, durante grande parte da vida. As abundantes quantidades de alimento, a temperatura e um número reduzido de predadores levam espécies como o robalo, o linguado ou a sardinha a depender do estuário até voltarem ao mar para se reproduzirem.
Há também os chamados peixes migradores. Uns vivem no mar e reproduzem–se em água doce, efectuando a postura nos estuários (anádromos); outros fazem o percurso inverso (catádromos). O rio Minho, o mais valioso para estas espécies em Portugal, é o único que alberga migradores anádromos como o salmão e a truta.
O sável é uma espécie deste grupo que a acção humana tornou ameaçada em toda a Europa. “Era a marca do rio Minho mas a população diminuiu bastante. As barragens são uma barreira que impede os peixes de continuar a subida do rio e assim deixam de ter habitat disponível”, nota Carlos Antunes, 46 anos, director do Aquamuseu do rio Minho. A mesma situação se verifica no caso do meixão, a fase juvenil da enguia. Trata-se de um peixe catádromo em vias de extinção e uma espécie ainda pouco conhecida. A pesca está proibida, na União Europeia, mas, no Minho, é permitida, ainda que de forma condicionada, porque tem um peso muito grande na economia local. Nos últimos dados disponíveis, de 1997, a Capitania do Porto de Caminha calculava o valor do meixão capturado em 445 mil euros, na moeda actual.
PROTEGIDOS Q.B.
A importância das zonas húmidas é reconhecida internacionalmente, através de diversas convenções e redes ecológicas. Em Portugal, os principais sistemas salobros estão abrangidos por disposições legais, que variam consoante a importância das funções por aqueles desempenhadas.
O Tejo e o Sado têm os seus estuários declarados como Reserva Natural, assim como o Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António, na foz do Guadiana. Grande parte das zonas salobras encontra-se também protegida por convenções internacionais (Ramsar) e/ou classificadas como Zonas de Protecção Especial, no âmbito da Rede Natura 2000 iniciativa de preservação ambiental de natureza comunitária.
Existem igualmente diferentes instrumentos de ordenamento do território como Planos de Bacia, de Ordenamento das Áreas Protegidas, de Ordenamento da Orla Costeira e até dos Estuários, o que não significa que os rios estejam protegidos. A avaliar pelo estudo que a Quercus divulgou a 1 de Outubro, Dia Nacional da Água, em 20 amostras de diferentes rios nacionais só duas mereciam a classificação de “Excelente” e quatro de “Bom”. Será que vamos conseguir continuar a comer peixe por muitos anos?
B. I. DAS ZONAS RIBEIRINHAS
TEJO
Área (ha): 32 500
População*: 2 500 000
Problemas: Contaminação fecal, diminuição da função de viveiro, metais pesados, destruição do sapal, pesca, pressão urbanística
DOURO
Área (ha): 980
População*: 700 000
Problemas: Extracção de inertes, presença de metais pesados, poluição doméstica, urbana e agrícola
GUADIANA
Área (ha): 2 200
População*: 60 000
Problemas: Abandono das salinas, destruição de sapal, alteração das rotas migratórias das espécies anádromas.
MINHO
Área (ha): 2 300
População*: 130 000
Problemas: Assoreamento, alteração das rotas migratórias das espécies anádromas (que sobem os rios para desovar), destruição do sapal
SADO
Área (ha): 22 600
População*: 270 000
Problemas: Artificialização da bacia, pesca, pressão turística e industrial, conversão de salinas em tanques de aquacultura, estaleiros navais
RIA DE AVEIRO
Área (ha): 11 300
População*: 400 000
Problemas: Eutrofização (crescimento anormal de plantas aquáticas, que pode originar a morte do ecossistema ribeirinho), pressão humana, urbanização e construção de malha viária, diminuição da função de viveiro, destruição do sapal, aterros para fins agrícolas.
RIA FORMOSA
Área (ha): 14 800
População*: 300 000
Problemas: Qualidade da água, viveiros de bivalves e de peixes, destruição do sapal, poluição urbana e industrial * Que reside junto do estuário ou à zona húmida
* Que reside junto do estuário e da zona húmida.
RANKING
IMPORTÂNCIA*
Tejo > Douro > Minho > Sado = ria Formosa = Guadiana > ria de Aveiro
* Tendo em conta factores de biodiversidade e estatutos de conservação, valor dos recursos extraídos e usos comerciais, tamanho da bacia, área e população
GRAVIDADE DE PROBLEMAS
Ria Formosa > Guadiana > Sado > Minho > ria de Aveiro > Tejo > Douro
URGÊNCIA
Douro > Tejo > ria de Aveiro > Minho > Sado > Guadiana > ria Formosa
Fonte:Plano Nacional da Água/VISÃO