Em novembro de 1930, num corredor dos escritórios do Partido Nacional-Socialista, em Munique, o ex-cabo Adolf Hitler é interpelado por um atrevido repórter português que o cumprimenta, o fotografa e lhe oferece o exemplar de um livro de entrevistas da sua autoria. O já emergente político populista alemão responde-lhe, em francês, a três perguntas. No dia 23 desse mês, o Diário de Notícias puxa à primeira página, a letras gordas, a “Agitada e sensacional entrevista com Adolf Hitler”. Nela, o enviado especial do jornal à Alemanha, o jornalista António Ferro, que, embora tivesse apenas 35 anos, já privara com os chefes das ditaduras modernas, de Primo de Rivera (Espanha) a Benito Mussolini (Itália) e a Kemal Ataturk (Turquia) – dos quais possui fotografias autografadas, como é uso na época –, gasta cerca de 18 mil carateres para reproduzir declarações de Hitler que não ocupam mais de 800 carateres. A “sensacional entrevista” não passava, afinal, de uma interpelação apressada, feita de pé, num corredor. António Ferro usa de todo o seu engenho para contar a história atribulada de como conseguiu chegar à fala com o grande homem.
Visto a olho nu, dir-se-ia que se trata de um embuste, uma vigarice do jornal que vende gato por lebre, à imagem de tantas outras “entrevistas” que o repórter já tinha no currículo e que foram obviamente penteadas pela sua própria imaginação. Mas, analisado retrospetivamente, todo o ambiente surrealista e, ao mesmo tempo, inquietante, que rodeia o futuro ditador alemão, se sente como se nós estivéssemos lá. Do assessor de opereta Ernest Hanfstaengl ao Café Keck, dos “camisas castanhas”; do improvável Hoffmann, o “fotógrafo oficial” do futuro Führer, com o estúdio cheio de fotos do líder que se vendem como santinhos, ao “ajudante impecável” de Hitler, “feito de uma só peça, de uma peça de artilharia”; do clima de bas-fond político ao inquietante militarismo subterrâneo e larvar – tudo é captado pela pena do jornalista. À ironia de António Ferro, que não deixa pedra sobre pedra do exótico interlocutor, não escapam os passos “militares” – que, logo a seguir, emenda para “militaristas”… – de Hitler, quando este se aproxima. Nem os seus “alucinantes olhos azuis, o bigodinho à Charlot, o nariz que arremete”. Nem o seu ar de “boneco de loiça, como uma faiança de Copenhaga ou de Viena”. Nem a forma como se afasta, “um, dois, um, dois, como se já estivesse a partir para a guerra”. No título, embora sem surpresa de conteúdo, traz uma caixa mundial, visto estar entre aspas, como uma ameaça direta do “boneco de loiça”, incapaz de se conformar com os termos da rendição alemã de 1918: “O Partido Nacional-Socialista é o partido da paz, mas não da paz de Versalhes.”
Ditador ou ditadura, descubra as diferenças
Quase oito anos depois, a 27 de abril de 1938, data que marca os dez anos de Salazar no Governo, o jornal O Século chama para a primeira página um breve balanço do consulado salazarista: “O eminente homem público, sr. dr. Oliveira Salazar, estabeleceu uma democracia dentro da tradição nacional e integrada no temperamento e no carácter portugueses.” Ou seja: o parlamentarismo, que podia funcionar em povos com a maneira de ser dos ingleses, não era exportável para Portugal. E o próprio nazismo, a par do comunismo eram sistemas antinaturais. Por essa altura, já António Joaquim Tavares Ferro, à data com 42 anos, levava quatro anos e meio à frente do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN). Antevendo o que seriam conclusões como a de O Século, ele já havia preconizado, como objetivo, no outono de 1932, antes mesmo da constituição do poderoso organismo para a propaganda: “Ditador e povo devem confundir-se de tal forma que o povo se sinta ditador e o ditador se sinta povo.” Numa foto icónica desse ano em que Ferro, Salazar e Mendes dos Remédios descansam sentados no chão, de pernas esticadas, à sombra de um carvalho, o novel presidente do Conselho apresenta-se humilde, com umas botas de solas rotas, quase tão descalço como o povo que vai pastorear. Em contraste com a “faiança de Viena”, Hitler, ou o novo César de Roma, Mussolini, Salazar dispensa o estilo marcial ou as insígnias militares que o pé boto, de resto, jamais permitiria ostentar, por inaptidão para a tropa. E, nos futuros cartazes e fotografias vendidos pelo SPN, Ferro substituirá tais dragonas pela capa e batina de Coimbra, como se o chefe fosse um simples estudante.
Cultivando os contactos certos e promovendo visitas da intelectualidade internacional, António Ferro, enérgico e workaholic, dedicará os primeiros anos no SPN a atiçar a curiosidade internacional sobre Portugal e a sua liderança, depois de o País ter sido estabilizado, após os anos conturbados de instabilidade política e social e de bancarrota financeira, do final da primeira República e início da ditadura militar (esta imposta pelo golpe de 28 de maio de 1926). O gigantesco PREC de 16 anos (1910-1926), mais a crise financeira de outros dois tinham sido ultrapassados pela mão de aço, enluvada de veludo, de um provinciano, um obscuro financeiro de Coimbra. E isto excitava o imaginário europeu, já familiarizado com as modernas ditaduras do Velho Continente, muito menos brandas, pelo menos, na aparência. O livro de António Ferro, Salazar, o Homem e a Sua Obra, fora um bestseller em França, com o sugestivo título Salazar, Le Portugal et son Chef, numa tradução de Fernanda de Castro, mulher do autor. O impacto da obra (que também foi traduzida para inglês) além-fronteiras causou, até, algum embaraço em Portugal, visto que, do ponto de vista constitucional, o “chefe” do País era Óscar Carmona, o Presidente da República, a quem Salazar devia reportar. Nada que António Ferro não resolvesse com o recurso à sua tremenda imaginação, no jogo de cintura político: “O sr. general Carmona é efetivamente o chefe da Nação, mas o sr. dr. Oliveira Salazar é o seu chefe político.” E, descobrindo um genial ovo de Colombo político, acentuava, na introdução a uma badalada entrevista a Carmona: “O sr. dr. Salazar é o ditador e o sr. general Carmona é a ditadura!”