Ao fim de 11 anos a prestar assistência espiritual à comunidade britânica da pacata vila algarvia da Luz, em Lagos, o padre anglicano David Heal cumpriu uma missão que julgava impensável: confortar os pais de uma menina desaparecida.
O sacerdote foi, aliás, dos primeiros a testemunhar o desespero de Gerald e Kate McCann, por sinal católicos, e dos poucos a entrar no apartamento do casal de turistas, no resort Ocean Club: visitou-os durante o serão da passada sexta-feira, 4, um dia após a pequena Madeleine, de 3 anos, se ter eclipsado na noite. «Estavam de rastos, perdidos.
É daquelas situações em que, até para nós, é difícil ser-se forte», contou à VISÃO o padre que, ainda assim, lhes deixou o consolo possível: «Deus traz sempre esperança para a dor.» Quanto à conversa que teve com os pais da criança, David Heal escuda-se com o sigilo. Mas diz-nos, «muito convicto», que se tratou de um «rapto premeditado» e que «alguém, de certeza, estudou e vigiou aquela família». E, sem rodeios, admite «perfeitamente que tenha sido um britânico».
A fé e a ciência geram, por vezes, proximidades inesperadas: à hora de fecho desta edição noite de terça-feira, 8, cinco dias depois do desaparecimento de Maddie, a Polícia Judiciária (PJ) estava seriamente inclinada para a hipótese de o rapto resultar de uma operação planeada e de ter tido como autor um cidadão britânico.
Num enredo que levanta muitas dúvidas, os investigadores gastaram dias a seguir pistas falsas, a percorrer bares, restaurantes e casas abandonadas, estreitando o funil da averiguação. À custa, com frequência, do método de tentativa e erro.
Um vulto na escuridão
A tese de rapto que a PJ está a seguir terá origem, precisamente, no jantar de quinta-feira, 3 a noite em que Maddie desapareceu, por volta das 22 horas, após ter sido deixada, pelos pais, a dormir no apartamento, com os seus dois irmãos gémeos, de 2 anos. Na esplanada do Ocean Club, a 30 metros do seu apartamento, Gerald e Kate, ambos médicos, conversavam com outros três casais amigos, que com eles tinham viajado de Inglaterra. Às tantas, um dos convivas levantou-se e reparou que, do lado de fora do muro do aldeamento, passava um homem que aparentava transportar uma criança ao colo. Nada comentou com os amigos. Afinal, a praia da Luz está pejada de pais e filhos pequenos. Só no dia seguinte, já andava meio mundo à procura de Madeleine, é que transmitiu à PJ o que vira.
Ao início dessa tarde, enquanto decorria, nas instalações da Junta de Freguesia local, um briefing entre a PJ e as restantes forças envolvidas nas buscas, surgiu outro turista inglês de calções, camiseta e chinelos a pedir, nervosamente, para falar com a polícia.
De imediato, levaram-no para o interior do edifício. Foi a partir dos depoimentos destes dois ingleses e de outros testemunhos que a PJ concebeu o primeiro esboço de um suspeito um desenho parcial de uma face.
Nessa mesma noite, os inspectores da Judiciária deslocaram-se a vários restaurantes da zona e perguntaram aos empregados se tinham visto um homem de cabelo puxado atrás, com perto de 40 anos, medindo cerca de um metro e 70, e que vestiria calças de linho brancas e um blusão de penas azul.
Também o depoimento que os pais de Maddie prestaram, nessa sexta-feira, na PJ de Portimão complementado, mais tarde, com as audições dos três casais amigos e de funcionários do aldeamento, ajudou a tornar credível o cenário de rapto. Chegado ao Algarve no sábado anterior ao desaparecimento, o grupo de ingleses, salvo fugazes passeios na vila e idas à praia, terá passado grande parte dos dias na piscina do Ocean Club, com os filhos, e jantado no restaurante Tapas, deixando, por norma, as crianças a dormir no apartamento.
Tudo isto num raio de 30 metros.
Os muros baixos do aldeamento permitem, perfeitamente, a quem está na rua, assistir a estas movimentações, e a PJ acredita que o raptor tinha os passos dos McCann bem estudados.
À ‘pesca’ de pistas
No apartamento onde Maddie dormia, havia uma janela voltada para o restaurante, mas outra dava para uma rua traseira, completamente fora do alcance visual dos médicos ingleses. Não se tratou, portanto, de um crime de oportunidade ou de acaso. «Quem o fez sabia que, àquela hora, iria encontrar três crianças sozinhas e que teria condições para não ser detectado. Se fosse um acto não planeado, haveria, com certeza, um rasto», estima um investigador.
A juntar à premeditação, a Judiciária também se inclinou para a origem britânica do raptor por acreditar que se trata de alguém que manteve algum contacto com os McCann. O Ocean Club recebe, essencialmente, turistas do Reino Unido. Ainda na sexta-feira, 4, e durante o dia de sábado, os inspectores passaram a pente-fino os quartos do bloco de apartamentos em que estavam alojados o casal de médicos e os seus filhos, sobretudo os que tivessem ângulo de visão para o rés-do-chão de onde desapareceu Maddie.
A PJ está, igualmente, na posse das listagens dos hóspedes, na sua esmagadora maioria britânicos, que na mesma altura passaram por este e outros aldeamentos da Praia da Luz.
Guilhermino da Encarnação, director da PJ de Faro, confirmou, logo no sábado, 5, a hipótese de rapto, vincando também a possibilidade de Maddie ter sido levada para fins sexuais. Declarações que, sabe a VISÃO, não caíram bem em sectores ligados à investigação, o que poderá ter levado ao silêncio a que a PJ se remeteu nas 48 horas seguintes. Isto porque o leque das eventuais motivações para o rapto era, já naquela altura, variado, e não passava só pelos circuitos da pedofilia.
Por exemplo, a polícia quis saber, junto do casal, se alguém na zona de Leicester, onde vivem, teria qualquer animosidade contra eles, a ponto de se deslocar a Portugal para lhes levar a filha. Foi até perguntado a Gerald se, enquanto cirurgião, teria tido algum acto médico mal sucedido que servisse de pretexto para uma retaliação.
Sexta-feira foi, segundo fontes conhecedoras, o momento de viragem nas investigações.
Os inspectores assumiram que o rapto da menina era a hipótese mais plausível. Pormenor que reforçava a tese: todo o calçado da pequena ficara no quarto. Até então, encarara-se, seriamente, a possibilidade de Maddie se ter escapulido por uma janela não trancada da habitação situada, como já se referiu, no rés-do-chão, num dos intervalos de 30 minutos entre as idas da mãe ao apartamento, para vigiar o sono dos três filhos.
Foi essa, aliás, a primeira convicção de elementos da GNR de Lagos, que chegaram ao local poucos minutos antes das 11 da noite, mais de uma hora depois de Kate ter dado pela falta da filha. A somar à ausência de indícios de arrombamento da janela, no interior da casa os militares também não viram quaisquer sinais de luta ou desarrumação. Mas o certo é que o azar perseguiu a investigação desde o início, uma vez que as buscas feitas pela família, os amigos e outros hóspedes para encontrar Maddie, na hora que antecedeu a chegada da polícia, produziram, inadvertidamente, efeitos perversos. Quando os primeiros dois cães de busca e salvamento da GNR chegaram, para seguir o rasto da menina, «a mistura de odores de pessoas era tanta que desorientou os animais não conseguiram apontar uma direcção por onde a miúda pudesse ter ido», contou fonte da Guarda.
Nessa altura, ainda os bombeiros verificavam poços, funcionários da Câmara vistoriavam esgotos e fossas, e dezenas de elementos da GNR, Polícia Marítima e Protecção Civil centravam as buscas nas zonas rochosas da Praia da Luz, no pressuposto de que a menina ali tivesse ido parar pelo seu próprio pé.
Aviso ignorado
Quando o caso rebentou, não faltou quem acusasse Gerald e Kate de negligência, por terem deixado, sozinhas, três crianças pequenas, no quarto. E o Ocean Club dispõe de serviço de babysitting. Aliás, na tarde do dia do desaparecimento, os três irmãos estiveram entregues a uma ama, até às 17 e 30.
À polícia, o casal alegou que a calma do local e a aparência segura da zona não fariam supor tal drama. Fizemos a experiência: no último domingo, nas imediações do aldeamento, o ambiente era de grande sossego, só interrompido por idosos ingleses em passeio, ou por casais deambulando tranquilamente com os filhos. «Isto é um dos últimos paraísos», atesta o padre David Heal, salientando a existência de uma «estável e forte comunidade» de britânicos, «que sempre se entreajudou e fez a sua vida na maior das calmas». Len Port, jornalista inglês há 25 anos residente na área, assina por baixo.
«Nem sequer ouvi falar, alguma vez, de um assalto.» A verdade é que nunca os donos do aldeamento sentiram como problemático o facto de o complexo dividido em vários lotes dispersos ser atravessado por vias públicas, onde se circula à vontade e onde, à excepção das entradas para o espaço da piscina e da recepção central, não há outras barreiras que não uma série de muros baixos. Mas Alex Woolfall, responsável do Ocean Club, admite que o desaparecimento de Maddie «irá obrigar a repensar algumas coisas» sobre o esquema de protecção que hoje existe, assente numa recepção a funcionar 24 horas por dia e numa equipa de seguranças. Falta, por exemplo, a vídeovigilância.
O certo é que, até ao último fim-de-semana, o negócio ainda não se ressentira. O grupo de hóspedes que era esperado, dois dias após o desaparecimento de Maddie, chegou, e não havia notícia de cancelamento de reservas.
Nas tardes de domingo e de segunda- feira, 7, a piscina e o bar estavam repletos de turistas. E a descontracção com que jovens casais britânicos e os seus filhos saíam e entravam no Ocean Club mostrava que, apesar da solidariedade com os McCann, o alarmismo não se impusera.
Isso, porém, foi antes de o jornal Daily Mail revelar que, há duas semanas, um casal inglês que estava hospedado no aldeamento alertara a segurança para a presença de «um homem esquisito», que rondava as janelas dos apartamentos. Os autores do aviso dizem ter sido ignorados pelo Ocean Club. A VISÃO tentou, sem sucesso, obter um comentário de Alex Woolfall.
Despojos para o laboratório
Só a não assumpção, desde logo, da hipótese de rapto, por parte da Judiciária, pode explicar o facto de o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras apenas ter recebido ordem de controlar as saídas para Espanha mais de 12 horas após o desaparecimento da menina.
Mas a PJ cuja investigação do «caso Joana», em 2005, fora amplamente criticada acabaria por destacar para o Algarve o maior contingente alguma vez utilizado numa única operação de busca. Aos elementos de Portimão e Faro, juntaram-se dezenas de inspectores da Direcção Central de Combate ao Banditismo (DCCB) e da Directoria de Setúbal, incluindo especialistas em homicídios e crimes sexuais. Ao todo, uma equipa de 180 inspectores, disposta num esquema operacional peculiar. Na sede da Judiciária de Portimão, foi instalada a central de informações, num restrito gabinete ao qual apenas acedem cerca de dez pessoas, como Guilhermino da Encarnação e Gonçalo Amaral, coordenadores da PJ de Faro e Portimão, respectivamente, ou Luís Neves, director da DCCB.
É ali que se filtram as centenas de pistas entretanto recebidas sobre o paradeiro de Maddie. As informações são, depois, transmitidas aos restantes inspectores, alojados num bloco de apartamentos fronteiro ao Ocean Club. No domingo, por exemplo, foi uma constante ver carros, com dois a quatro elementos da PJ cada, a saírem para investigar mais uma pista. Muitas apenas serviram para atrasar uma luta contra um relógio cada vez mais inclemente. Dicas populares situaram Maddie a entrar para um comboio, ou acompanhada por um casal ver-se-ia, afinal, que eram os próprios pais. Até um grupo de médiuns garantiu à polícia que a localização exacta da pequena seria determinada após um ritual de lançamento de búzios.
Qualquer menina loira tem dado origem a uma pista seja em que ponto do País for. «Já despistámos vários casos, em que o informador apenas vira um homem com uma miúda loira ao colo», conta uma fonte da PJ de Coimbra.
No Algarve, outras pistas levaram os investigadores até casas abandonadas. Numa, seriam encontrados bonecos que foram, de imediato, remetidos para laboratório. O mesmo sucedeu com uma meia de criança, uma chucha e rebuçados, descobertos nas imediações do aldeamento. Portimão possui uma pequena unidade de análises, mas grande parte dos objectos recolhidos tem ido para o laboratório da Polícia Científica, em Lisboa que, tal como o do Algarve, está a trabalhar em exclusivo neste caso, onde são feitos os testes de ADN.
Ritmo frenético
Além do jogo da espera laboratorial, há ainda uma imensidão de dados a serem escrutinados.
A Interpol e a polícia britânica enviaram para a PJ uma listagem de pessoas referenciadas em redes pedófilas e de desvio de crianças para adopções. As autoridades verificam quais e quantos poderão ter entrado em Portugal e, de alguma forma, estado perto dos Mc-Cann. De Inglaterra, vieram também dados de residentes em Leicester que possam ter chegado ao Algarve, nos dias que antecederam o desaparecimento de Maddie. Os inspectores da PJ gastaram muitas horas a ver dezenas de cassetes com imagens das câmaras de vigilância de estações de serviço, quer da auto-estrada que vai de Lagos a Espanha quer da A1, que liga o Sul e o Norte do País. A Judiciária, no entanto, admite que a menina inglesa possa já não estar em Portugal. Por exemplo, bastaria ao raptor cerca de uma hora para levar Maddie de Lagos até Espanha.
A este ritmo frenético, de deitar mão a qualquer pista, sobra pouco mais aos inspectores do que descansar uma ou duas horas e tragar umas sandes à pressa. O cansaço, esse, vai afectando, também, os perto de 70 militares que a GNR destacou para as buscas, as quais, em três dias, passaram de um raio de 3 km para outro de 20 km, em redor do aldeamento. A fadiga é, sobretudo, visível no grupo de Busca e Salvamento da Guarda, que veio de Lisboa, com oito cães treinados, para localizar a criança. Fazem sucessivas batidas, vasculham cada arbusto, moita, buraco ou canavial. Sem sucesso. Ainda assim, quando, no domingo passado, a VISÃO acompanhou aquela unidade numa operação de busca em Talefe da Luz, uma encosta a três quilómetros do aldeamento, não faltou vigor aos homens da Guarda e aos cães para percorrerem o monte, de ponta a ponta. Mas o profi ssionalismo não ocultava algum desânimo.
Nas batidas anteriores, tinham recolhido peças de roupa, que a PJ analisou. «Nenhuma tem a ver com a miúda», alvitrava um dos operacionais da GNR. E mesmo quando o pastor-alemão Zarius se quedou junto a uma pequena camiseta branca Maddie vestia um pijama claro, a descoberta não impressionou, minimamente, os militares.
«Isto é de um miúdo mais crescido.» O sentido prático mexe com estes homens: as 130 operações de busca e salvamento que a equipa já leva, em 11 anos, permitiram encontrar 23 cadáveres. E 24 pessoas vivas. Nenhuma, porém, após 36 horas de desaparecimento.
Os pais de Madeleine, esses, fazem por se alhear do pior. Têm passado os dias entre o novo quarto que lhes foi disponibilizado, no Ocean Club, e a piscina, onde, no domingo, estiveram parte da tarde com os dois gémeos e os familiares que vieram do Reino Unido para os apoiar. Apesar do semblante quase sempre carregado, foi possível vê-los em descontraídas brincadeiras com os filhos e até em conversas aparentemente alegres, no bar. Diariamente, o trajecto para a piscina obriga-os a passar ao pé do apartamento de onde Maddie desapareceu. Nunca olham para a fachada.
Quase tudo como antes
Haverá pior cartão-de-visita para o Allgarve do que o rapto de uma criança dentro de um quarto de hotel? Se a resposta parece óbvia, a verdade é que, passada uma semana, o turismo algarvio continua sem beliscões.
Quem o garante é Paulo Brehm, porta-voz da Associação Portuguesa de Agentes de Viagens e Turismo: «Não há notícia de cancelamentos.» Afirmação corroborada por Elidérico Viegas, presidente da Associação dos Hotéis e Empreendimentos Turísticos do Algarve.
Mas a iniciativa que daria a conhecer o programa governamental Allgarve, agendada para o próximo dia 16, em Londres, com José Mourinho, foi cancelada, na terçafeira, 8. «Vamos esperar até tudo isto passar», disse a assessora de imprensa da delegação do ICEP na capital britânica, Hannah Filer.
Quem não vê com optimismo o futuro é o presidente da Câmara de Lagos, Júlio Barroso: «Penso que, no Verão, iremos sentir os efeitos deste caso.»
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