Chegámos a Fez dia 15, quinta-feira, depois de sete horas sobre rodas. Por lá ficámos dois dias.
O centro da cidade é amuralhado. Do terraço dos prédios sobressaem inúmeras parabólicas brancas e os minaretes das muitas mesquitas espalhadas pela medina. O esquema de ruas é labiríntico. Nas artérias principais o comércio ocupa grande lugar de destaque, porta a porta.
Os transeuntes têm sombra garantida, graças às pérgulas de madeira que cobrem as ruas e os protegem do sol e do calor intensos.
Pelo meio deste imbróglio viário, há ruelas-travessas semi secretas, algumas com a largura dos nossos ombros, suportadas por escoras de madeira que mantêm os edifícios de pé.
No coração de Fez os cheiros intensificam-se, tal como os restantes sentidos, que tomam conta de quem passa e é de fora. Das fragrâncias das especiarias e dos temperos das carnes a grelhar, às peles que forram malas e sapatos expostos em muitas lojas.
Mas nenhum destes odores nos marcou tanto, quanto o que pudemos experimentar nas nossas incursões às tinturarias da cidade. Na verdade, a manufatura de peles é umas das âncoras económicas de Fez.
Visitámos duas, contornando sempre as entradas para turistas. Na primeira tinturaria conseguimos infiltrar-nos pela mão de um dos 130 trabalhadores do local. O Ahmett fez as honras da casa, sem nunca ter pedido nada em troca. Fez-nos uma visita guiada, onde foi possível ver os tanques onde são tingidas as lãs e o couro com várias cores, de diferentes tonalidades. Enquanto nos mostrava os segredos do seu local de trabalho, o jovem de 27 anos foi conversando connosco e até nos apresentou ao patrão
Hospitalidade e boa disposição insuficientes porém, para nos abstrair do cheiro nauseabundo a gordura ressequida e podridão daquela micro atmosfera.
Á medida que percorremos a medina, fomos sendo assediados para todo o tipo de negócios, quer por miúdos, quer por graúdos. Insistentemente, iam tentando aliciar-nos, como quem atira barro à parede, na esperança de que lá ficasse colada alguma coisa.
Conhecemos o Omar numa destas situações. Estávamos sentados num dos extremos da praça R’cif, quando o rapaz de apenas 8 anos se aproximou sem medos.
Meio encardido, dava para notar, pelos arranhões que trazia nos joelhos, que gostava muito de jogar à bola com os amigos.
Chegou ao pé de nós, sentou-se e meteu conversa, enquanto ia dando uma ou outra pancadinha nas costas.
Esteve connosco cerca de uma hora, tempo bastante para nos indicar caminhos, falar sobre o restaurante do pai e da casa onde vivia, do terraço e dos ícones da cidade que conseguia ver dali.
Atrevido e brincalhão, mas esperto… Não lhe escapava nada, pois tentava impingir negócio, enquanto conversava connosco sobre futebol, Fez e Marrocos.
Cerca das duas da tarde fizemos uma paragem na caminhada, junto à mesquita principal da urbe. Sentámo-nos nos degraus, mesmo em frente à porta do imponente edifício branco.
Enquanto trocávamos ideias com um jovem da nossa idade, vimos passar por nós inúmeros fiéis. Velhos, novos, subiam apressadamente a escadaria em frente ao templo, para cumprir uma das cinco orações diárias do Islão. Alguns trajavam túnicas brancas até aos pés, muitos calçavam sandálias de couro e a maioria deles trazia na mão um pequeno tapete, sobre o qual se ajoelhará para rezar.
Pouco tempo depois, abriram-se as portas da mesquita e durante cinco minutos formou-se um grande rebuliço, junto à entrada, com a multidão de homens a sair do templo.
Ao nosso lado, no chão, havia sido colocada uma grande malga, cheia de cuscuz e verduras, oferta de família, para os que tinham estado a cumprir o dever religioso.
O momento foi intenso e extremamente simbólico, quer pela simplicidade do gesto da família anónima, que ofereceu a refeição, quer pela humildade e compartilha dos que a aproveitaram, apesar da avidez com que saciavam a fome. Até nos chegaram a oferecer comida, mas recusámos simpaticamente.
Neste mesmo dia (o segundo em Fez), sexta-feira, grande parte das lojas estavam fechadas, por ser dia sagrado para os muçulmanos. No chão esbarrámos com muitos gatos bebés. Eram inúmeros, tantos, que as duas mãos não chegaram para os contar. A maior parte deles estava sempre a dormir. Magros de fome e de sede, exaustos de fraqueza e abandono, diambulam, quase invisíveis aos olhos de quem passa, pelas ruas movimentadas da medina. O culminar deste mesmo dia, foi também o último crepúsculo a que pudemos assistir do alto do terrado do hotel Cascade, onde estivemos sempre alojados.
Ao cair da noite, quando o sol desapareceu e o céu se tornou laranja e azul, os prédios, as antenas e os minaretes ficaram em contra luz, deixando evidenciar o perfil da cidade.
Nesse momento e com o soar do “Adhan” (nome da chamada para a oração) a partir das mesquitas, milhares de andorinhas voaram sobre nós, desgovernadas. Eram muitas, muitas mesmo. Uma imagem única, que guardámos como a última e a mais fascinante de Fez.