O homem público custa a distinguir-se hoje do homem privado graças à acção dos tabloides e sobretudo das redes sociais e dos telemóveis que filmam tudo e mais alguma coisa mesmo sem consentimento dos filmados, tanto em espaço público como privado. Já tivemos oportunidade de assistir numa dessas televisões que praticam o “jornalixo”, a um interrogatório judicial que se desenrolou numa sala de tribunal, com vídeo e áudio, sem que o interrogado ou o magistrado tenham alguma vez autorizado tal abuso.
Esses canais televisivos e jornais tabloides angariam assim muita audiência. Eles sabem que boa parte do público gosta disso e entende dar-lhes o que supostamente gosta, em nome do direito à informação, mas na realidade devido ao interesse económico de olho nas receitas publicitárias.
É por isso que, em virtude da aliança estabelecida informalmente com operadores judiciários, saem cá para fora não apenas dicas sobre indícios ou suspeitas criminais em investigação a figuras públicas, sujeitos a segredo de justiça, mas até as próprias peças processuais e gravações de interrogatórios. Os advogados de defesa acabaram por entrar neste jogo viciado “fora das quatro linhas”, para não serem prejudicados, e também eles se dispõem a proferir abundantes declarações públicas sobre os processos dos seus constituintes, querendo assim combater a manipulação promovida pela fuga ao segredo de justiça proveniente do aparelho judicial.
Esta mediatização extremada parte da reformulação cartesiana hipermoderna que diz “Apareço, logo existo!” E esta febre não se resume à política pública, mas também à desportiva. Basta dizer que há mais tempo para discutir a política desportiva dos clubes de futebol do que a análise concreta e usufruto daquele desporto em si mesmo. Coisa idêntica se pode dizer do mundo religioso, onde a maior podridão e bizarria é a que conta com maior exposição mediática.
Os efeitos deste estado de coisas são perigosos. Desde logo afastam da política e da vida pública os mais capazes, que não estão para ter a sua vida devassada constantemente, a família incomodada e a dignidade e bom nome a que têm direito injustamente lançados à lama. O facto de muitos agentes políticos activos serem dos menos qualificados, por sua vez contribui para a degradação das instituições do estado democrático.
Junte-se a isto o decorrente crescimento do populismo – que se alimenta justamente deste ambiente doentio – e a consequente descrença progressiva na democracia, abrindo caminho para a emergência das tendências autoritárias verificadas na Europa e no mundo. Com este caldo cultural, e porque a memória dos povos é curta, já há muito quem clame entre nós por um qualquer D. Sebastião, um homem que ponha isto na ordem, um novo Salazar.
A sociedade tornou-se altamente mediatizada e parte da comunicação social aposta na devassa da vida privada, pessoal e familiar, mesmo que os visados nada façam por isso. Por outro lado, a vida coletiva foi-se transformando, em especial desde o último quartel do século vinte, no espetáculo em que se situa, em múltiplas dimensões. Vivemos constantemente à janela do mundo, fazendo lembrar as mulheres que no Bairro da Luz Vermelha em Amesterdão se exibem na montra dos prostíbulos.
A política e a televisão fundiram-se numa só. Os principais comentadores de política em horário nobre de televisão são indivíduos com carreira política ao mais alto nível e com aspirações a um regresso, e quase todos provenientes de um mesmo setor do espectro partidário, o que introduz um desequilíbrio na percepção da coisa política nos consumidores de informação menos atentos.
Enquanto arte performativa o teatro conta hoje com uma concorrência feroz e desleal. Há grandes atores tanto na política como no futebol, e na maior parte dos casos nem é necessário pagar bilhete para assistir a grandes espectáculos, já que nos entram por casa dentro todos os dias mesmo sem pedirmos ou desejarmos, por via de televisão, internet e redes sociais.
É por isso que o atual estado de coisas exige do consumidor de informação uma dieta rigorosa em termos mediáticos, a bem da sua saúde psíquica, assim como algum recato pessoal em matéria de exposição pública.
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