Enfrentar um diagnóstico de deficiência de um filho é um desafio gigante. É entrar num mundo desconhecido e viver numa busca desenfreada por respostas. Mas a parte mais difícil, pelo menos para mim, foi a entrada na escola.
Quando chegou a altura de matricular a Francisca no 1º ano, descobri que para inscrever uma criança com deficiência não basta ir ao portal das matrículas e inserir os seus dados de identificação. É preciso percorrer a lista de escolas da zona, visitá-las, falar com as pessoas, perceber se há condições físicas apropriadas para a receber e se há professores capazes de ensinar o que a criança pode aprender.
Além disso, é preciso saber um monte de siglas, que eu desconhecia por completo, apesar de ter dois filhos mais velhos: PEI, RTP, CAA, EMAEI, CRTIC, AMIM, PIT.
Vivi um verdadeiro calvário à procura de uma escola para a Francisca. Entre públicas e privadas, todas pareciam ter uma desculpa para não aceitar a minha filha.
Comecei por ligar para uma daquelas escolas que dizem que “as crianças são livres”, que “vivem em contacto com a natureza”, e “cada uma aprende a seu ritmo, respeitando a individualidade de cada uma”. Quando expliquei as características da Francisca, a resposta veio num tom assustado: “Nunca tivemos uma criança assim”.
Outras, depois de reuniões em salas cheias de gente, professores de ensino especial, diretores da escola, acabaram por dizer que não tinham vaga.
Outras que se diziam inclusivas, não podiam aceitar a Francisca porque estavam mais especializadas num determinado tipo de deficiência.
Vi escolas recentes com grandes escadarias na entrada, em que as crianças com mobilidade condicionada tinham de entrar por um portão lateral, feito a pensar nas entradas e saídas dos caixotes do lixo.
Vi escolas em que o Centro de Apoio à Aprendizagem (CAA) era no primeiro andar. Em caso de uma catástrofe não sei como vão tirar as crianças com mobilidade condicionada dali. Mas não vamos pensar nisso, será uma sorte se o elevador estiver a funcionar.
Vi escolas que não deixam entrar os pais. Muitas crianças com deficiência são não verbais, os pais não têm como perceber as dinâmicas da escola se não puderem estar presentes e observar a forma como os seus filhos são tratados.
Vi escolas que não deixam entrar terapeutas privados, mas também não têm terapeutas para estas crianças que precisam de terapias praticamente todos os dias.
Vi escolas em que as crianças com deficiência só vão à sala de aula se der jeito, que não vão ao recreio com as crianças da turma porque “podem magoar-se” e que comem isoladas no refeitório porque “é mais fácil”.
Decidi insistir na escola pública ao pé da minha casa, a que me pareceu reunir mais pontos a favor. Foram precisas algumas reuniões, documentos, ajustes e flexibilidade de ambos os lados, claro, e até agora (ela já está no 3.º ano) só tenho boas histórias para contar. Desde os funcionários da entrada, até aos professores dentro da sala, às auxiliares nos corredores e aos colegas no recreio, todos contribuem para que a nossa família se sinta bem-vinda na comunidade escolar.
Tal como as outras escolas, nunca tinham tido uma criança como a Francisca, o que é óbvio, já que a sua condição é raríssima, mas, desde o início, mostraram interesse em conhecê-la e a aprender o que fosse preciso. Ficou definido o que seria feito em cada situação, quer pela escola, quer por nós, pais, e o compromisso de haver muita comunicação entre as duas partes.
O maior receio foram sempre as convulsões. Até que um dia percebi que não tinha nada a temer. A Francisca teve uma convulsão grande no meio da sala de aula. Foi um susto para alunos e professores, mas foi rapidamente assistida e correu tudo dentro do esperado. No dia seguinte, enviei uma mensagem no grupo dos pais da turma, explicando o que aconteceu e disponibilizando-me para esclarecer quaisquer dúvidas. Imaginei que crianças com 8 anos pudessem ter chegado a casa impressionadas, com medos, que não quisessem mais chegar perto da Francisca. Mas o que aconteceu, afinal, encheu-me o coração.
A professora aproveitou para dar uma aula de primeiros socorros e falou sobre as convulsões e sobre como se deve agir, de maneira simples e prática. Os miúdos chegaram a casa e contaram aos pais o que tinha acontecido com a Francisca, de uma forma tranquila e desconstruída, contentes por saberem que ela recuperou bem e por terem aprendido a lidar com a situação. Recebi ainda um carinho enorme dos pais da turma, contando-me como os filhos falavam bem da Francisca e se interessavam pelos seus gostos, pelos seus brinquedos, pelas suas especificidades. Fiquei realmente feliz por a Francisca estar tão bem acompanhada e por terem resolvido tão bem algo que poderia até ter sido traumático.
Provavelmente a Francisca nunca vai aprender a ler, nem a escrever. Mas pode aprender tantas outras coisas e aprenderá mais ainda se estiver integrada entre os pares, se passar os dias com crianças que a desafiam, que puxam por ela, que lhe mostram comportamentos de crianças da mesma idade e que a fazem sentir uma criança da sua idade. Não há decreto de lei que obrigue isto a acontecer sem haver uma transformação na forma como a sociedade encara a deficiência. Enquanto o medo do desconhecido prevalecer sobre a empatia e a compreensão, continuaremos a erguer barreiras em vez de construir pontes. A inclusão não é só um direito. É uma escolha que todos podemos fazer todos os dias.