O historiador Robert Louis Wilken, na sua obra Liberty in the Things of God: The Christian Origins of Religious Freedom (Yale University Press, 2019) defende que o conceito não terá sido gerado propriamente pelo Iluminismo mas deriva da igreja cristã primitiva e medieval. Na perspectiva histórica do autor os principais desenvolvimentos deste direito humano não terão nascido do secularismo mas da tradição cristã.
Apesar de se centrar sobretudo na liberdade religiosa na Europa nos séculos XVI e XVII, omitindo muita informação sobre factos ocorridos noutras paragens ou em épocas posteriores, Wilken historia o percurso da liberdade religiosa desde o Império Romano, a partir de Tertuliano (século III) que avançou com a frase “liberdade de religião”, até concluir com William Penn, um quaker do século XVII, na América colonial.
A ideia nuclear é que ao longo do seu percurso histórico a fé cristã passou a ser percepcionada de modo diferente. É o caso do processo de adesão do indivíduo à comunidade de fé, que se tornou uma escolha pessoal, daí resultando que a liberdade religiosa passou das comunidades para os indivíduos, em linha com o primado da pessoa humana desencadeado pela modernidade.
Apesar de tudo, terão existido tropeções em matéria de reconhecimento do direito intrínseco das pessoas à liberdade religiosa ao longo desse processo, antes, durante e posteriormente à Reforma protestante na Europa, em especial ao lidar com a tensão entre proteger a ortodoxia e dar espaço à liberdade individual. Esse exercício foi complexo e teve os seus falhanços, como no caso paradigmático do reformador João Calvino (1509-1564), que tropeçou no caminho da liberdade individual do cristão.
Calvino considerava o ser humano “sob um governo duplo”, em que a consciência individual contava, em matéria religiosa, e o governo secular se ocupava de matérias como a segurança pública, alimentação e habitação. Apesar disso Calvino conferiu aos magistrados da cidade (o governo secular) o poder de impor a manifestação pública da religião.
Wilken resume assim o pensamento de Calvino: “Em questões temporais, os cristãos estão sujeitos à autoridade civil, mas em questões de fé estão sujeitos apenas a Deus. Ao mesmo tempo, ele acreditava que uma igreja apoiada publicamente era necessária para a paz civil. Essa tensão haveria de vir a atormentar pensadores posteriores.”
Calvino seria criticado, tanto no seu tempo como actualmente, por não seguir a sua própria lógica sobre a liberdade da consciência individual aquando da execução do herege Miguel Serveto (1511-1553) em Genebra. Mas apesar das falhas e incoerências, a verdade é que Calvino semeou o conceito de liberdade religiosa. Segundo Wilken “foi a interpretação de Calvino dos dois reinos e da consciência nas Institutas que deu aos defensores da liberdade religiosa que vieram mais tarde as ferramentas teológicas para enfrentar novos desafios”.
O conceito de liberdade religiosa tem uma marca cristã, pelo menos desde o momento que os teólogos passaram a considerar a liberdade religiosa ou liberdade de consciência, como um direito natural conferido por Deus a todos os seres humanos, e não um favor das autoridades
Entretanto, um estudo da Barna Research datado de 2019, conclui que mais de metade (55%) dos americanos concordam que o conceito de liberdade religiosa significa que “todos os cidadãos devem ter liberdade de consciência, o que significa serem capazes de acreditar e praticar os compromissos e valores fundamentais da sua fé.” Porém, cinco anos antes essa percentagem era muito superior (69%) e a percentagem de cristãos que hoje discordam desta definição triplicou.
Não será alheia a esta evolução preocupante a crescente panóplia de abusos praticados em nome da fé, em especial por políticos e líderes religiosos, tanto naquele continente como um pouco por todo o mundo. Isto é, o uso indevido da fé para fins egoístas, seculares ou ideológicos, a partir de lideranças religiosas movidas por interesses inconfessáveis.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+Da pretensa maldição africana ao revisionismo histórico
+ E se Hitler não tivesse assassinado aqueles milhões de judeus?
+ A democracia, as confissões religiosas e os políticos
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.