Em 2002 foi publicado numa revista académica brasileira um estudo de sociologia das religiões relativo às origens do sionismo evangélico no país. A investigação promovida pelo colega Paul Freston e outros académicos pretendia responder à necessidade de compreender a argumentação religiosa, produtora tanto do discurso como da acção política, de apoio ao fortalecimento e ampliação territorial do Estado de Israel por parte de relevantes lideranças religiosas brasileiras nos últimos tempos.
Acontece que o sionismo cristão já era há muito politicamente relevante nos Estados Unidos e parte da Europa, mas não no hemisfério sul. Porém, terá sido por efeito de mimetismo que o fenómeno surgiu também aí. Durante muito tempo os políticos do Sul global não sofreram pressões das lideranças religiosas no sentido de dar apoio a Israel nos seus confrontos com os palestinianos na ONU.
Mas algo sucedeu para ter provocado alterações teológicas a tal ponto que a bandeira do estado israelita é hoje presença assídua “em eventos políticos, protestos sociais, processos eleitorais e templos evangélicos”, além do activismo político de lideranças e fiéis nessa causa na defesa do Estado de Israel e das práticas judaizantes que se verificam hoje nalgumas igrejas.
Segundo o estudo “Observou-se que, este activismo tornou-se mais perceptível na coligação política que elegeu Jair Bolsonaro à presidência, envolvendo sectores conservadores evangélicos, católicos, judeus, além de militares e liberais.”
Embora o discurso sionista cristão não seja novidade, pois já desde há cem anos que é conhecido, o caso brasileiro parece justificar-se devido ao facto de ter sido já no séc. XXI que os evangélicos passaram a ter um protagonismo notório no poder legislativo.
Mas a influência vem a América trumpista. Tal como Trump, Bolsonaro foi empurrado por sectores evangélicos para transferir a embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém.
Vem também da influência de eventos internacionais chamados proféticos realizados nos EUA e Europa, assim como da teologia dispensacionalista que desde fins dos anos de 1990 tem vindo a provocar um interesse crescente por um Israel fantasioso “ora associado ao imaginário bíblico, ora como um exemplo de prosperidade divina, ora na apropriação de uma estética judaica como se nota entre algumas igrejas evangélicas brasileiras, com destaque para a Igreja Universal do Reino de Deus,” de que é exemplo paradigmático o “Templo de Salomão” em São Paulo.
É nessa sequência que surge um forte recrudescimento do turismo religioso à Terra Santa, as relações com a Embaixada Cristã em Jerusalém e a influência de sionistas cristãos relevantes como Terra Nova, Milhomens, Itioka, Valadão ou Malafaia.
A ideia de “povo eleito” nos dias que correm é sempre perniciosa. Alguns sectores religiosos americanos assumem-na para si, tendo criado uma religião americana civil e nacionalista, que os leva a correr para “salvar o mundo”, quase sempre pela força das armas.
De facto Iavé revelou-se aos hebreus, há milhares de anos, tendo estabelecido com eles uma aliança por meio de Moisés. Nesse sentido, os antigos hebreus eram o povo eleito por Deus e seu agente entre as nações. Porém, passados milénios, querer que o moderno estado de Israel, fundado em 1948, é o mesmo povo eleito pelo Deus do Antigo Testamento e com Ele aliançado não confere com a realidade, até pelo facto de grande parte da população nem sequer ser crente ou ter fé ou qualquer prática religiosa.
Mais. Defender o abuso permanente e a opressão que Israel exerce sobre o povo da Palestina – sendo permanentemente condenado pela ONU, a Amnistia Internacional e o Human Rights Watch – só é compreensível quando a desonestidade intelectual aliada a uma fé não esclarecida se conjugam.
Até se compreende que os cristãos tendam a manifestar alguma simpatia pelo povo judaico, tendo em conta que a sua fé procede desse contexto religioso – afinal Jesus de Nazaré era judeu – e a civilização ocidental ser de matriz judaico-cristã. Mas esse filo-semitismo não equivale necessariamente a uma defesa cega e acrítica do estado de Israel, justificando a sua actual política de abuso do direito e da dignidade dos palestinianos.
É que, enquanto o sionismo cristão está na ordem do dia, Telavive esfrega as mãos de contente, tal como a direita religiosa e a extrema-direita, enquanto alguns líderes religiosos usam os fiéis como massa de manobra política.
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