Há memórias dolorosas de recordar. Momentos tão humilhantes que tentamos esquecê-los. Coisas que fizemos e de que nos arrependemos. Passamos à frente e continuamos. Não existe uma vida sem erro. Muitas das coisas de que nos podemos envergonhar são pequenos tropeções sem significado num caminho maior. Mas o que é que acontece quando esses pequenos nadas se tornam eternos? O que é que acontece quando não se pode esquecer? Quando uma falha nos persegue? Quando o que devia ser íntimo acaba exposto?
Estes pensamentos vieram-me à cabeça depois de ouvir uma amiga contar ter descoberto que o filho adolescente troca fotos de pénis com os amigos num grupo de WhatsApp do desporto que pratica. A revelação pareceu-me inusitada, até ela me explicar que esta é a versão 2.0 das milenares práticas de balneário. Os miúdos trocam as imagens para as medir e comparar, numa daquelas expressões de testosterona primitiva difíceis de compreender. “Mas eles não percebem que podem acabar expostos?”, interroguei. Não. Nenhum deles entende como, mesmo sem associar os rostos aos corpos, uma simples captura de ecrã das mensagens pode fazer circular sem controlo aquelas imagens, denunciando-os.
Quando eu era adolescente, mostrar o meu corpo era uma decisão íntima e voluntária. A revelação dava-se entre duas pessoas frente a frente, sem nenhum dispositivo pelo meio, sem a possibilidade de o que foi privado passar, de repente e sem controlo, a ser público. Claro que existiam os rapazes que se penduravam na janela dos balneários da C+S para tentar ver-nos a trocar de roupa quando a Educação Física calhava ao último tempo da tarde. Claro que um namorado podia, sem que nos apercebêssemos, fotografar ou filmar o que não queríamos. Um dos grandes escândalos desse tempo foi precisamente a divulgação de vídeos sexuais da Pamela Andersson, que nós víamos às escondidas. Mas tudo isso era raro. Um percalço.
Esses foram os primórdios da internet. Entretanto, passaram-se décadas em que nos habituámos a uma exposição sem limites. Os que agora são adolescentes foram mostrados ao mundo na primeira ecografia, viram filmada cada uma das suas gracinhas de bebé, publicadas todas as fotos de férias e aniversários. Foram os próprios pais que os ensinaram a perder a fronteira entre o público e o privado.
Há uns tempos, estava com os meus filhos num parque infantil quando vi chegar um homem com um bebé ao colo. Pareceu-me muito familiar. Eu conhecia aquele pai e aquele bebé, mas não os conseguia identificar. O homem olhou para mim sem qualquer sinal de reconhecimento, enquanto eu não conseguia parar de pensar que sabia quem eles eram. Foi quando chegou a mãe. Era alguém que eu sigo no Instagram. E, sem saber dizer porquê, fiquei extraordinariamente embaraçada com a ideia de reconhecer aquelas pessoas que, na verdade, não conheço.
É o mesmo desconforto que sinto quando vejo partilhadas as caras adoráveis dos filhos dos meus amigos. É como olhar para o buraco de uma fechadura. Mas já nem há fechadura. Só portas escancaradas.
Os adolescentes cresceram habituados a ser reconhecidos pelos amigos dos pais que nunca os viram, mas que sabem tudo deles pelas redes sociais. Vivem num sistema de validação social medido em likes e visualizações. Acreditam que terão tanto mais valor quanto mais tiverem e exibirem. E, sabendo que a economia real não lhes dará grandes hipóteses de ganhar dinheiro, encontram oportunidades em exporem-se ainda mais na internet. Sonham ser influencers e youtubers. Querem ser a sua própria mercadoria, mesmo que não saibam bem o que vendem e muito menos a que preço.
Nas últimas semanas, foram notícia duas raparigas que faziam vida de se expor no Onlyfans. A francesa Julie Luxie, de 21 anos, que foi encontrada sem vida em casa, ensanguentada e rodeada por cartuxos de óxido nitroso, a droga da moda entre os adolescentes. E a ucraniana Maria Kovalchuk, de 20 anos, largada numa estrada, inconsciente, gravemente ferida, depois de ter sido convidada para uma festa privada no Dubai. Julie e Maria foram consumidas e descartadas, como produtos. São casos extremos, mas elucidativos da forma como a mercantilização da imagem comporta a desumanização de quem se expõe.
A maior parte dos jovens que agora brinca aos influencers na internet não terá, felizmente, finais tão trágicos. Mas a exposição a que se estão a submeter fá-los exporem-se a outro risco: o de perderem a possibilidade de deixar para trás, bem no fundo do baú da memória, os momentos dolorosamente humilhantes que gostariam de esquecer. Há uma geração que não vai ter como esquecer.
Todos os pequenos pecados, as grandes falhas, os erros impensados. Cada uma dessas coisas pode voltar para os assombrar. A internet não se esquece.
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