Nos dias que correm, a memória é um exercício ingrato. Baralha consciências e não vende bem. Já o ilusionismo, como qualquer prostituta novata, tem muita clientela. Já não exigimos que nos digam a verdade. Contentamo-nos que pareça real. E pagamos o preço de acreditar.
As soluções para a crise do mercado financeiro norte-americano e a depressão das nossas economias não obedecem a qualquer ponderação, memória ou ensinamento. Nem permitem o raio-x do sistema ao ponto de negá-lo. Na bolsa da actualidade, sucedem-se os alarmes, tensões e passes de mágica, valores supremos das cotações informativas. Mas a experiência, habitualmente previdente quanto à repetição de desgraças, não está na moda, não resolve problemas, não tem horário nobre. Os poderes atacam consequências. As causas são coisa de teóricos e não constituem moeda corrente em terra de cegueira colectiva por excesso de ilusionismo. As ilusões defendem-nos de pouco, mas quem as questiona?
No actual momento de angústia mundial e crise dos mercados, a actualidade não nos faz saber mais sobre as raízes do que estamos a viver. Não tarda, seremos novamente iludidos. Parar para explicar, co-relacionar factos e ensinamentos, equacionar soluções ponderadas e sérias baseadas em saberes feitos e não seguidistas, isso sim, talvez ajudasse. Para que não volte a repetir-se. Acontece que não estamos preparados para um crash emocional dessas proporções. E poucas mentes têm fusíveis para compreender a tragédia em toda a sua dimensão. Os jornais e as televisões são, aliás, o espelho dessa realidade: entre a vaga de sustos e alçapões que poucos anteciparam, abundam as ejaculações precoces dos habituais analistas do óbvio.
Por pudor e ignorância, não me atrevo a ir muito mais longe. Registo apenas o curto-circuito de muitas cabecinhas iluminadas assim que, aplicados à realidade norte-americana, regressaram à gramática económico-financeira termos tão renegados como “nacionalizações” ou “estatização”. Habitualmente satanizados pela direita neo-qualquer coisa, a esquerda moderna e o economês de serviço, aqueles termos empoeirados continuam, pelos vistos, a ter imensa actualidade quando se trata de socializar crises, prejuízos e falta de decoro. Nos países certos, claro.
Uma breve resenha histórica, porém, chegaria para entender o essencial. E não nos espantarmos tanto.
Primeiro: desde há séculos que, apesar de dizerem e praticarem o contrário no mundo inteiro, os EUA são dos países mais proteccionistas dentro de casa. Note-se a suavidade da palavra: proteccionismo. Assim financiaram e subsidiaram anos a fio a sua economia. Para o bem e para o mal. Quase sempre para o bem de poucos e o mal de muitos. As leis ultra-proteccionistas e elevadas taxas alfandegárias abundam desde finais do século XIX nos EUA. Lá, o Estado sempre soube cuidar, com requinte e mesuras, dos interesses dominantes. A bem da pujança e dos negócios a rédea solta fora de portas.
Segundo: os EUA nunca confundiram o remédio com a doença. Externamente, querem mercados de perna aberta para os seus negócios e multinacionais, sem amarras estatizantes ou…proteccionistas. Internamente, fecham o mercado a qualquer ameaça externa e estão sempre prontos a salvar o sistema quando ele faz nas fraldas. E o mundo que tape o nariz.
Terceiro e último, parafraseano Eduardo Galeano, e à laia de ensinamento para o futuro: de cada vez que o capitalismo exalta as suas virtudes, convém, talvez, revistar-lhe os bolsos. Seria prudente e previdente. E talvez nos ensinasse mais do que o ilusionismo reinante. Não é que isso nos proteja do sistema. Mas, pelo menos, não faríamos figura de idiotas úteis.