Pega-se num indivíduo, homem ou mulher para o caso é indiferente, muito embora alguns considerem que o processo é mais rápido no caso dos homens, e tira-se-lhe tudo.
Completamente tudo: família, casa, forma de ganhar a vida, comida, segurança, país, dignidade. Quanto mais despojado estiver, mais fácil será a transformação. Há quem defenda até retirarem-se-lhe alguns órgãos, mas isso fica à vontade de quem o prepare e não alterará a receita. O que pode transformar este processo de fazer um terrorista num outro muito mais elaborado e eficaz – transformá-lo numa máquina de guerra e ódio, capaz de atribuir Estrelas Michellin no menu da desumanidade, é a idade do indivíduo em causa.
Quanto mais jovem, mais tenro, mais frágil, mais fácil de manipular e maior será a permanência do ódio, essencial à finalidade do processo.
Depois é só esperar até estar pronto a explodir.
Serve-se em sangue quente.
Com conflitos um pouco por todo o mundo, há duas verdades insofismáveis: a primeira é o enriquecimento de grandes companhias de armamento. A segunda é a perpetuação do clima de crispação e ódio por gerações
Uma criança, um jovem que desde muito cedo teve que deixar para trás a segurança da infância, que teve que se tornar adulto à força de lutar por um lugar para viver, por um prato de comida, por um pouco de água, jamais esquecerá o que é ser proscrito, abandonado, estar só. Jamais entenderá palavras como “amor” e “fraternidade” pois nunca soube o que de facto significa “normalidade”.
Ao longo da História e dos conflitos que a talharam, uma das primeiras preocupações foi proteger os mais fracos e entre estes as crianças. Colocá-las a salvo era uma prioridade elas eram o garante do futuro.
Mas a sistematização, a organização desta proteção só começou verdadeiramente com as grandes guerras que assolaram o último século.
Na guerra de 1914/1918, embora tivesse existido uma evacuação das crianças das áreas de conflito, esta não foi organizada e por isso mesmo os números relativos ao êxodo destas são escassos.
Com a Guerra Civil de Espanha, o processo passou a tomar contornos de sistematização e profissionalismo. Estima-se que, durante esta guerra fratricida, 30 a 35 mil crianças tenham sido transferidas das zonas republicanas para países considerados na altura seguros, como França ou a União Soviética.
Na Segunda Grande Guerra, aí sim, a evacuação foi levada a cabo por organizações especializada como a Cruz Vermelha ou a Pied Piper no Reino Unido.
Ao todo, estima-se que tenham sido deslocadas dos cenários de guerra dois milhões de crianças levadas para países em paz, que as acolheram.
Um deles foi Portugal.
Este tipo de acolhimento foi sempre temporário porquanto a adoção só seria possível em casos em que, terminado o conflito, a reunificação com as famílias de origem não fosse possível.
O mundo vive hoje o maior e mais sangrento momento desde os conflitos relatados.
Não tenhamos ilusões: os fluxos de deslocados aumentarão para cifras não imaginadas.
Criar um corredor humanitário com prioridade para crianças e menores abandonados e sós, ou que os seus pais queiram colocar a salvo até ao final do conflito, não é algo novo, mas é urgente refazer. Sem burocracias, sem receios, com todo o cuidado securitário mas pensando no futuro
Os números, que começam já a ser divulgados, dão conta de que, desde 7 de Outubro de 2023, foram mortas 5.500 crianças em Gaza e 33 em Israel. O conflito provocou ainda pelo menos 17.000 órfãos, segundo a UNICEF.
A guerra contra o Hezbollah, que ainda agora começou, já fez 50 mortos entre as crianças e forçou a deslocação de 175 mil, também segundo a UNICEF.
Não precisamos dum grande exercício de imaginação para entender o nível de trauma, raiva, desespero, desamparo, solidão que acompanhará para sempre estas crianças e suas famílias.
Não será, pois, de admirar que esses meninos, arrancados à sua meninez, se tornem terroristas num futuro próximo. Não admirará que sejam presas fácil do radicalismo e das redes de tráfico.
Estamos a criar os novos assassinos, os novos senhores da guerra, que jamais quererão outra coisa que não seja a aniquilação do inimigo.
Estamos a criar uma geração que não entenderá a palavra PAZ.
Perante a inoperância da ONU e da UE na resolução de nenhum destes conflitos, perante o receio de tomar decisões que possam pôr em causa o poder arrecadado em urna, perante tudo isto só uma solução empreendida pela sociedade civil poderá garantir o futuro.
Criar um corredor humanitário com prioridade para crianças e menores abandonados e sós, ou que os seus pais queiram colocar a salvo até ao final do conflito, não é algo novo, mas é urgente refazer. Sem burocracias, sem receios, com todo o cuidado securitário mas pensando no futuro.
Temos o exemplo de Jorge Sampaio que, com um projeto duma simplicidade desconcertante, conseguiu que centenas de jovens sírios continuassem os seus estudos fora do clima de guerra, aqui neste país pequenino, mas que sabe dar grandes lições, quando a isso se propõe.
Com esse projeto evitou – estou certa! – muitas radicalizações, muitas mortes e fez mais pelo combate ao terrorismo e ao tráfico que muitos projetos megalómanos. Pensando apenas com o coração e com a firme convicção de que todas as leis têm como objetivo servir a humanidade novamente e não interpor-se a ela.
Portugal pode fazer o mesmo, agora, já!
Criando uma rede de famílias tutelares que recebam estas crianças à semelhança do que aconteceu com os meninos austríacos na II GG, Criando uma rede consular que se articule e promova este corredor. Fazendo jus a Aristides de Sousa Mendes, Jorge Sampaio e aos anónimos que ficam na historia dos corações que salvaram.
É possível fazermos a diferença. Só é preciso um pouco de coragem, rapidez e sair à rua tentando caminhar com os sapatos ou os pés nus dos outros
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