Gostava, caro leitor, de não ter de voltar novamente ao tema da crise política. Porém, a atualidade não nos dá descanso: nem a si e aos portugueses, saturados de tanta trapalhada; nem a nós, jornalistas, cuja função é escrutinar o que se faz de bem e mal no País. É o que temos.
A estabilidade é uma miragem em Portugal. Depois da Geringonça, veio o “Escangalho”. Parece-me um bom epíteto para o XXIII Governo, sinónimo de balbúrdia, confusão, desordem. Contra todas as expectativas depois de conseguida uma maioria absoluta, este é um Governo em autodestruição acelerada, numa degradação penosa que arrasta com ele a imagem das instituições democráticas.
Já passámos o ponto de nos perguntarmos como é que chegámos aqui. Esta maioria absoluta, como todas as outras, trouxe prepotências, facilitismos e uma certa arrogância no poder, e chegou tarde demais – ao fim de sete anos intensos, com um Governo exaurido e enfraquecido, com falta notória de pesos políticos. Podemos questionar-nos como seria este Governo se tivesse uma composição com nomes com mais maturidade e mais experiência, mais sentido de Estado, mais competência também. Por esta altura, adianta pouco. Lembra-me um verso que o meu avô citava amiúde: “E assim se arrasta pela lama o amor puro de uma alma sã em corpo podre.”
Ainda por estes dias se soube que Portugal liderou o crescimento económico na Europa no primeiro trimestre, a inflação voltou a recuar em abril e está já nos 5,7%. Mas de que valem intenções e bons números se as polémicas quase diárias se sucedem a um ritmo vertiginoso? Há um ambiente de exaltação e sobressalto permanentes. Um ambiente tóxico que é insustentável por muito tempo.
A verdade é que cheira a fim de ciclo, num ciclo que mal acaba de começar. Lembra os últimos anos de Cavaco Silva, desgastados com polémicas, outros casos e casinhos. Também por esses dias se tentou uma remodelação governamental, um “refrescamento”, como veio pedir agora Carlos César, presidente do Partido Socialista, sugerindo associar a “experiência de uns ao entusiasmo de outros”. É o próprio PS que se agita, constrangido, em modo de autossobrevivência, com tudo o que se está a passar à frente dos seus olhos.
É essencial recuperar a autoridade do Governo. Mas remodelações são como as operações plásticas – um retoque aqui e outro acolá podem fazer uma pequena diferença, mas a certa altura, as intervenções fazem mais mal do que bem. O resultado é incongruente, artificial. Ninguém acredita, não funciona. A política vive de credibilidade: uma vez perdida, é muito difícil reconquistá-la. Não há “mata-borrão”, como chamou o Presidente da República ao primeiro-ministro, que sempre dure. Há marcas que dificilmente se apagam.
Marcelo Rebelo de Sousa tem a mais difícil das tarefas: gerir a enorme pressão que chega da esquerda e da direita, aguentar a erosão institucional e segurar o “Escangalho”, enquanto dura o desconchavo governamental, até ao limite da sua viabilidade. E sobretudo, até ao limite da sua própria popularidade. Os argumentos que o PR usa são compreensíveis: não interessa ao País eleições antecipadas agora, é importante estabilidade política para sair da crise, estabilizar inflação e reconquistar poder de compra, meter a andar o PRR, recuperar o tempo perdido na Saúde, melhorar as condições dos professores. Mas o copo da paciência do Presidente não é infinito. Transbordará quando a sua própria imagem estiver à beira de ficar comprometida. Uma coisa é segurar o “Escangalho” enquanto este, mal ou bem, ainda opera e os portugueses o suportarem porque a sua vida vai melhorando, outra é ficar para a História como cúmplice de um caos estéril.
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