Se houve coisa que o dia seguinte à eleição de Trump revelou, foi o grau de acolhimento que as suas ideias têm deste lado do Atlântico. Nada que não se soubesse, basta ver a vaga populista, radical e/ou extrema direita que está a assolar a Europa para perceber que há muitos Trumps europeus e potenciais apoiantes em cada esquina. Vide Viktor Orbán na Hungria, Beata Szydlo na Polónia, Norbert Hofer na Áustria, Frauke Petry na Alemanha. Vide a França, que para o ano poderá levar à segunda volta uma candidata xenófoba e fascista, Marine Le Pen. (A Visão desta semana em papel traz aliás um artigo de fundo sobre o assunto, adiantando o que pode vir aí, e é caso para ter medo) Populistas que com esta vitória saem altamente inspirados, claro está.
1- Uma eleição não é um banho purificador
Um dos argumentos usados ontem, sobretudo pelos simpatizantes deste discurso mas não só, foi o que Trump era uma escolha popular e não ficava bem criticar a escolha do povo. Um argumento sem pés nem cabeça. Como se um sufrágio fosse uma espécie de banho purificador de todos os males, que apaga as nódoas passadas dos dirigentes eleitos. Como se pelo facto do povo ter escolhido Trump, ele subitamente deixasse de ser xenófobo, mentiroso, sexista e misógino (ver adiante). Como se tivéssemos todos de, a partir de agora, passar a criticá-lo à boca pequena, porque ele foi a escolha dos americanos. Como se criticar Trump fosse não aceitar o resultado eleitoral, coisa que ironicamente se tivesse ganho Hillary ele anunciou que faria. Não seria de esperar outra coisa de quem nunca se tentou reger pelas regras da sã convivência democrática, essa mesma que os seus apoiantes vêm agora exigir de quem o critica.
É preciso aceitá-lo, claro está, como Presidente dos Estados Unidos (nunca é demais repetir o facto para nos habituarmos mesmo à ideia). Mas criticar Trump e tudo o que ele representa não é não aceitar a democracia nem ser parcial. É simplesmente questionar o resultado de a ver a funcionar, e isso não tem nada de mal. Essa é, aliás, a beleza da democracia, cheia de problemas, mas diria Churchill o melhor modelo de Estado que, até agora, foi inventado: é o povo que escolhe os seus representantes, é o povo que os atura e é felizmente também o povo que tem o poder de os criticar e meter na ordem – e até correr com eles.
2 – Trump é o grau zero do sentido de estado e ter um Presidente destes nos Estados Unidos é, mais do que um embaraço, um perigo
Dizer que Trump é xenófobo, sexista, misógino, mentiroso, racista e errático não é uma questão de opinião. É simplesmente uma questão de constatar factos públicos. Tão auto-evidentes que se enfiam pelos olhos a dentro. (Sobre as mentiras, vale a pena ver estas confissões de um fact-checker de Trump no Politico) Mas basta ler o próprio, quem tenha estômago para isso. (É que já era mau fazê-lo antes de o saber presidente, pensar que agora pode meter tudo isto em prática torna-se ainda mais inquietante.) Lê-lo por exemplo aqui, no Twitter, onde se entreve durante meses a disparar milhares de ofensas contra tudo e todos. Para os mais distraídos, aqui fica uma esclarecedora compilação que o New York Times recolheu de todos os insultos que Trump dirigiu a 282 pessoas, instituições ou lugares.
Ou ver alguns vídeos das suas entrevistas e dos seus comícios e ouvir os seus discursos. Pérolas como a sua defesa em relação às dezenas de mulheres que vieram dar a cara e dizer que ele as tinha abusado sexualmente. “A sério? Olhem para ela. Não creio, não creio”, comentou publicamente sobre uma das mulheres alegadamente agredidas. Insultos, atrás de insultos, atrás de insultos (vale a pena ler este texto da VISÂO sobre o insulto como arma na política). Pérolas que fazem George W. Bush parecer o estadista mais decente, responsável, preparado e inteligente do mundo.
Por outro lado, discuti-lo com argumentos de “esquerda versus direita” é não perceber rigorosamente nada sobre o fenómeno Trump, um fenómeno totalmente fora do sistema. Ele não é republicano, nem de esquerda nem de direita. Ele é simplesmente Trump, com ideias que horrorizam o partido e outras que agradam muito à esquerda.
Um homem que a maioria dos próprios americanos dizia que não era habilitado para ser presidente e não tinha temperamento para ter por exemplo, os códigos das ogivas nucleares e que acabou, ironicamente por o meter em funções. As causas para este fenómenos são profundas, e dão um tratado. Voto de protesto e saturação com o sistema? Sim, tudo indica. Estupidez? Não tenho dúvidas, mas só o tempo o confirmará. (A New Yorker chamou-lhe uma “tragédia americana”, num texto que vale a pena ler aqui)
Agora, ironicamente, é esperar pelo que, infelizmente, acontece tantas vezes por esse mundo fora: que Trump depois de eleito não faça nada do que em campanha disse que faria. Ontem no discurso (básico) começou bem: apresentou-se um doce, longe do candidato anti-establishment, e anti-tudo.
3 – Hillary está longe de ser a candidata perfeita
Para os americanos, esta eleição foi uma escolha entre dois males menores. Hillary nunca foi a candidata aglutinadora que foi Obama, e desde o primeiro dia que o partido sabia isso. Com 30 anos de exposição pública, sedimentou uma imagem de mulher fria, calculista e antipática, com uma lista de poucos mas potencialmente destrutivos erros de palmatória, como os emails enviados de um servidor público ou posições passadas radicais sobre o aborto. Sempre se soube que para muitas mulheres, e elas são 52% do eleitorado norte-americano, que todos esperavam que fosse decisivas nesta eleição, votar em Hillary sempre foi algo que fariam a contra-gosto.
As feministas mais convictas (nas quais, sublinhe-se, não me revejo), como a histórica e radical Nancy Fraser, por exemplo, viam-na como uma “feminista neoliberal”, de uma corrente meritocrática, e individualista que detestavam . “Ela encarna uma aliança entre Wall Street e movimentos feministas, anti-racistas, LGBT, ecologistas, etc, uma unificação que se faz contra a classe industrial e tradicional norte-americana”, disse numa entrevista ao L’Obs. Mas ela era, apesar de tudo, um mal menor, lá está, quando do lado de lá estava um personagem como Trump.
Foi também na lógica do mal menor que a esmagadora maioria dos media norte-americanos, num movimento absolutamente único na história, fizeram o endorsement de Hillary. Não porque a achassem a candidata ideal ou porque nutrissem uma especial simpatia por ela, mas porque a perspectiva de que os americanos pudessem eleger um homem como Trump era demasiado assustadora. Sim, foi uma triste ironia. Sim, os media foram os principais derrotados nestas eleições, ao lado de Hillary. Alimentaram o monstro com milhões de horas de tempo de antena gratuito (analistas estimam que tenha sido o equivalente a 55 milhões de dólares de espaço mediático nos oito principais media americanos, 16 milhões dos quais só no New York Times, pode encontrar o estudo aqui), e depois trataram de tentar controlar os danos. Não conseguiram, como está bom de ver, e isso também diz muito sobre o poder de influência que os media tradicionais ainda detêm nos EUA (e um pouco por todo o lado), face, por exemplo, à mobilização que se consegue nas redes sociais. E aí a Trump bastava ser Trump – mestre do insulto, da ofensa, da mentira para ter terreno fértil para crescer. O resultado está à vista.