Três milhões de pessoas fechadas na Área Metropolitana de Lisboa para conter um vírus. É digno de um Spielberg, escrito por Mário de Carvalho. De acordo com as autoridades, há várias razões para que 70% dos casos se concentrem em Lisboa e Vale do Tejo: uma população densa em mobilidade constante, desconfinamento social, maior descontração com as medidas anti-Covid, a variante Delta e a testagem intensiva. Entre 24 de maio e 13 de junho testou-se quase tanto em Lisboa como no resto do País. No que toca aos grupos, a maior parte dos contágios surge abaixo dos 40 anos, ou seja, entre as populações menos vacinadas e mais ativas. Aqui, impera um equilíbrio delicado: regressar à tona da água e reabrir a economia, fundamental, todavia mantendo a cautela e a disciplina. Manter, mesmo agora que os mais frágeis – por quem todos nos sacrificámos desde o início – começam a estar protegidos pelas vacinas. Por enquanto, a palavra de ordem é uma: vacinar, vacinar, vacinar.
Num momento histórico em que a confiança na ciência, na política, mas também no vizinho, se tem mostrado essencial, é de garantir que saímos desta crise mais conscientes e cooperantes, isto é: mais desconfinados e menos desconfiados. Os portugueses são um povo desconfiado?
Promovido pela Fundação Gulbenkian, o estudo “Os Valores dos Portugueses” trouxe dados interessantes sobre quem somos e como vemos o mundo. O eco mediático deu especial ênfase a um único valor assustador – só 37% dos portugueses rejeitam a ideia de um líder autocrático -, havendo, contudo, dados salientes noutros campos: na igualdade de género, os portugueses estão entre os europeus que mais se opõem à ideia de que os cargos de poder devem ser entregues a homens, mas não deixam, quase metade, de acreditar que “o que a maior parte das mulheres realmente quer é um lar e filhos”. Contraditório, no mínimo. Quanto à imigração, Portugal revela abertura crescente, embora ainda haja quem acredite que os imigrantes “tiram trabalho aos nacionais” e “são um peso para a segurança social”. Como sabemos, os números reais mostram exatamente o contrário.
Quando o tema é confiança, estamos entre os mais céticos da Europa: apenas 17% dos lusos concordaram com a ideia de que se “pode confiar na maioria das pessoas”. É triste. Na Dinamarca, na Noruega ou na Finlândia, o número ronda os 70 por cento. De pé atrás como nós, estão a Sérvia, a Macedónia ou a Albânia.
Confiança não é ingenuidade. Confiar não é ser enganado, prescindir da atenção, da interrogação, da consciência e do escrutínio, mas antes pisar as lajes de uma democracia saudável. Viver desconfiado das pessoas e instituições é típico de uma existência paranoica, de uma sina passada no interior de um castelo de areia, à mercê das marés. A confiança é o cimento das relações e a vida em comunidade é feita delas. Aqui, não deixa de ser interessante que o estudo, coordenado por Alice Ramos e Pedro Magalhães, tenha apontado a “família” enquanto a esfera mais importante da vida para os portugueses (88%). Será a família um porto de abrigo, onde as pessoas sentem que podem confiar? Talvez. Para muitos portugueses, a família é um casulo protegido, que serve como refúgio do mundo – agressivo e traiçoeiro. E isso é uma convicção lírica, mas nem sempre saudável. Nenhuma democracia sobrevive assim. Além do mais, não faz jus à realidade: por mais atenção que a esfera pública mereça, por mais crime, corrupção e chico-espertice de uns quantos, os portugueses são maioritariamente pessoas honestas, trabalhadoras e confiáveis. Todos os dias temos provas disso. Todos os dias à nossa volta.
No que toca à cultura cívica, num plano talvez relacionado, Portugal está nos últimos lugares dos índices europeus da cidadania ativa, onde pesam a politização, a consciência social e a pertença a movimentos, associações e iniciativas cidadãs. Já aqui escrevi sobre isso e o estudo deixa-o claro. Será que não confiamos porque não nos envolvemos? Ou não nos envolvemos porque não confiamos?
Haverá um caldeirão de questões culturais, eventualmente ligadas ao rasto histórico da ditadura, repressora de toda a cultura cívica, mas não acredito na tese de que “os portugueses são assim” – menos interventivos ou menos politizados – por natureza. Quando o assunto é cultura cívica, parece haver uma correlação clara com a pobreza. Num país pobre, com direitos laborais fracos e precariedade estrutural, as populações têm menos disponibilidade para participar, por não reunirem condições básicas que lhes permitam sair das lides do dia-a-dia. Quem se esgota para levar comida para a mesa não tem cabeça para refletir sobre o meio ambiente, ou sobre as eleições para o Parlamento Europeu. O incentivo à participação tem de vir acompanhado de medidas que garantam o desenvolvimento social e económico, o combate à precariedade e a qualidade de vida. O mesmo para a confiança. Apelar à confiança dos cidadãos na comunidade, nas instituições e no Estado também é promover a transparência, a eficácia na justiça, a dignidade no trabalho e na habitação. Até lá, haverá desconfiança, que é como a ferrugem dos mecanismos democráticos.
Declaração de interesses: confesso-me parte convicta dos 17% do estudo. Não só tenho a sensação, como tenho a certeza de que se pode confiar na maioria das pessoas.