Três sismos numa semana em Portugal, a camisola “poveira” saqueada pela indústria da moda e um navio de 400 metros atravessado no Canal de Suez. Não é exatamente a primavera de que estávamos à espera. Depois da discussão – na qual participei – sobre se estamos, ou não, todos no mesmo barco, somos obrigados a aceitar que a imagem de um porta-contentores de 220 mil toneladas, encalhado na areia, ao largo do Egito, é algo com que todos podem identificar-se. Se, no combate à pandemia, não estamos todos no mesmo barco, estamos todos bloqueados à espera que a maré suba. Estamos todos no mesmo porta-contentores.
De acordo com as autoridades egípcias, um “erro humano ou técnico” pode ter estado na origem da imobilização do navio Ever Given na terça-feira, que obstruiu a rota de navegação mais movimentada do mundo. Em 2020, 19 mil navios, com mais de mil milhões de toneladas de carga, utilizaram a passagem para circular entre a Europa e a Ásia. Doze por cento do comércio marítimo internacional passa pelo Canal do Suez – ou não passa, neste caso, fazendo disparar preços e ansiedades ao redor do mundo. Inicialmente, acreditou-se que o acidente fora causado por uma tempestade de areia, combinada com ventos fortes, mas o almirante Osama Rabie, chefe da autoridade local, diz não terem sido esses os únicos fatores. À data em que escrevo esta crónica, 300 navios estão parados nas extremidades do canal, que liga o Mar Mediterrâneo ao Mar Vermelho. Espera-se que a maré cheia facilite os trabalhos. Na manhã de domingo, a proa do cargueiro já fora movida 17 metros a norte, para onde navegava antes de se atolar na areia.
O impacto do acidente na economia mundial é sério e expõe a complexidade de uma rede de comércio intrincada. Motivados pelo bloqueio, os atrasos nas entregas já fizeram subir os preços do petróleo e o fecho do canal tem um impacto diário direto de 12 a 14 milhões de dólares na economia egípcia. Por dia, há 7,6 mil milhões de euros em mercadorias impedidos de passar. O estorvo vai atrasar peças e matérias-primas, componentes da China, algodão da Índia e gás natural, colocando indústrias em cheque. Só seremos capazes de calcular o impacto total deste travão dentro de semanas. Woan Foong Wong, professor da Universidade de Oregon, avisa que a Europa sentirá mais este efeito do que os EUA, que também recebem carga pela rota alternativa do Pacífico. Os fanáticos do “pensamento positivo” dirão que a possibilidade de os preços da gasolina virem a subir em Portugal, Espanha, França e Itália não é preocupante, mas antes um incentivo para ficarmos em casa e não cruzarmos concelhos. Será? Para Sharat Ganapati, professor de economia em Georgetown, vai “demorar algum tempo até voltarmos à normalidade”. Onde é que já ouvimos isto?
Sem menosprezo pelo impacto deste acidente, é impossível passarmos ao lado do seu potencial alegórico. Como a covid-19, o bloqueio do Suez mostra-nos que os fenómenos locais são questões globais. No mundo contemporâneo, os sistemas estão de tal modo ligados, que um vírus em Wuhan, ou um encalhamento no Egito, rapidamente se tornam num problema mundial. Num globo interdependente, não há fenómenos estritamente “locais”. O efeito dominó das crises é o calcanhar de Aquiles da “Aldeia global”, onde o problema é sempre de todos. A globalização é isso – para o bem e para o mal. Perante essa evidência, cabe-nos lutar por sistemas sociais, económicos e ambientais mais resistentes às crises. Mais sustentáveis, mais justos e mais resilientes. Na recuperação da pandemia, essa deverá ser uma dimensão prioritária.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
À medida que a vacinação avança, as escavadoras desimpedem a passagem do navio. O “regresso à normalidade” é imperfeito e sempre tardio, mas vai avançando. A Organização Mundial de Saúde continua a investigar a origem do vírus, como a autoridade do canal do Suez tenta despistar o motivo do acidente. Em ambos os casos, sabemos que, mais pangolim, menos erro humano, a origem é desproporcional ao efeito. Reconstruir o mundo d.C., depois de Covid, passará por arquitetar circuitos globais à prova de sismo.
Entre os vários navios bloqueados no Canal de Suez, há onze cargueiros romenos de gado, com 130 mil ovelhas a bordo, provavelmente impacientes. E com razão. Mais uma vez, não estamos todos no mesmo barco. Mas estamos todos no mesmo porta-contentores.