Quando um dos meus tios disse à minha avó que a pandemia duraria até ao fim do ano, eu achei a profecia péssima e pessimista. Estávamos em Abril. Péssima foi, porque a ideia de que a doença mais infame de sempre viera para ficar era na altura uma miragem devastadora. Pessimista afinal não era, já que qualquer dia é Natal e o bicho ainda nos inferniza. O cenário mudou, de qualquer modo.
Se, há sete meses, a paralisação era o grito de guerra, hoje já sabemos o suficiente sobre o vírus para percebermos que é possível viver com ele. Também compreendemos que o confinamento generalizado é um suicídio com consequências económicas, sociais e, em particular, psicológicas imensamente mais graves do que os efeitos do SARS-Cov-2. Ninguém vai querer, nem conseguir, pagar a conta desse colapso. A vida terá de continuar, com cuidados e higienes – é assim que devemos olhar para a nova vaga. Tentando ser tão realista quanto o meu tio, o segundo tsunami vem aí e não será o fim do mundo se nos prepararmos para ele. Há, aliás, terceiras e quartas vagas de pandemias mais graves a combater. Já é claro para muitos, seria desejável que fosse claro para todos: com toda a atenção que a situação merece, a monomania covidiária tem de acabar.
Manuel Carrageta, presidente da Fundação Portuguesa da Cardiologia já alertou: num dia em que morrem 3 pessoas de covid-19, morrem 100 ou mais pessoas de doenças cardiovasculares. É esta a realidade em Portugal. De março a agosto, morreram este ano mais 6000 pessoas do que em 2019, das quais nem sequer um terço pereceu de Covid. Surpresa? Há várias teorias para este brutal aumento de mortalidade, onde uma das principais aponta o impacto do stress lancinante onde nos mergulharam, enquanto destilador de males psicossomáticos. Ninguém consegue conservar-se são neste universo corrosivo, incendiado por boletins de alertas e surtos e emergências ao minuto. Segundo Carrageta, o facto de que “houve uma redução enorme nas idas às consultas e urgências nos hospitais” é igualmente uma causa provável para o aumento dos óbitos. Ou seja, para além do adiamento de consultas e exames, as pessoas estão de tal modo petrificadas pelo medo de uma morte hipotética, que acabam a fechar-se em casa, seguindo o caminho da morte certa. Quando vencem o pânico para ir às urgências, já é tarde demais.
No caso das doenças cardiovasculares, a relação é ainda mais perversa: se uma das melhores formas de conservar o nosso maravilhoso coração, maravilhoso, é andar a pé, sair à rua e fugir ao stress, o sedentarismo pseudo-heróico que os fanáticos do coronavírus promovem vem conduzir-nos à forca. No plano social, o clima de castração, frustração, pavor e policiamento instalado corrói os tecidos da paz e da empatia. O autoritarismo na forma como as restrições são, por vezes, apresentadas, ou o modo como alguns jornais se regalam em expor a “festa ilegal”, o “casamento ilegal” ou o “ajuntamento ilegal” cheira a uma espécie de ditadura securitária que nunca pensei vir a experienciar. Ao mesmo tempo, a demência multiplica-se nos mais velhos e a paranoia nos mais novos. A Alzheimer Portugal reportou, em quinze dias, um aumento de 40% de pedidos de ajuda face aos mesmos quinze dias de 2019. Neste quadro, não se percebe porque é que os telejornais continuam a alimentar esta febre, esta visão equídea do mundo entre palas estreitas. Essa é, sem dúvida, a grande infeção do momento. Ao fim de sete meses, já ninguém reforça o cuidado com o vírus, nem ninguém aprende mais nada sobre o bicho pelas notícias. Ninguém.
O risco de um vírus altamente contagioso é real, mas a omnipresença do tema Covid parece fruto de um instinto pornográfico e sensacionalista, massacrante, contraproducente e, até, mortal. O Ministério da Saúde parece ter-se convertido no Ministério da Covid, desenvolvendo boletins com a Direcção-Geral da Covid. Precisamos urgentemente de sair deste loop.
A nós, caber-nos-á proteger-nos desta doença, como dos outros males. Aos órgãos de poder, e com um papel fundamental para os media, caber-lhes-á poupar as populações ao flagelo da morte psicológica, do medo e do totalitarismo sanitário. É louvável o empenho em prol da saúde pública, quando nos mobilizamos de facto pela saúde pública. Essa mobilização é política, social e individual, pulsando ao ritmo de cada peito, mas não passa pela obsessão, pela monomania nem pelo autoritarismo.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.