No passado dia 2 de outubro, realizou-se a 2.ª Edição da Conferência Funções Soberanas do Estado, que teve lugar no Auditório CGD do ISEG – Lisbon School of Economics & Management (Universidade de Lisboa), subordinada ao tema: “O papel do Estado no crescimento económico”, organizada conjuntamente pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses, a Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária, o Sindicato dos Funcionários Judiciais, o Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos e o Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e do Notariado.
O painel, moderado por Luís Rosa, contou com David Pinheiro, Coordenador da equipa de investigação criminal da Direção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais, Mónica Jardim, presidente do Centro de Estudos Notariais e Registais da Faculdade de Direito de Coimbra, Pedro Fonseca, diretor da Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária e Rui Cardoso, diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal.
Presenciamos uma discussão muito proveitosa que me levou a partilhar algumas reflexões.
Como sabemos, a justiça é uma função soberana do Estado e os tribunais são os órgãos de soberania com competência para a administrar em nome do povo.
Mas o que tem a justiça que ver com o crescimento económico?
Obviamente que este não deverá ser visto como uma finalidade da justiça, mas poderá (e deverá) ser uma consequência da sua atuação, como bem referiu Rui Cardoso, na referida conferência.
Pensemos no âmbito do procedimento criminal. À justiça cabe não só aplicar as penas (de multa ou prisão), mas também remover as vantagens da prática do crime.
Imaginemos alguém que é condenado, na pena de quatro anos de prisão, pela prática de um crime de fraude fiscal qualificada, na sequência de um esquema de faturação falsa que lhe permitiu obter uma vantagem patrimonial de um milhão de euros.
O agente poderá pensar que compensa ir preso porque já fez seu um milhão e, se tudo correr bem, poderá beneficiar de liberdade condicional ao meio da pena.
A pena constituiria apenas um “custo de produção suportável pelo agente”.
Isto seria igualmente válido para outros crimes, designadamente, o crime de tráfico de estupefacientes, tráfico de pessoas ou de corrupção e afins.
Contudo, o legislador estabelece, expressamente, que são declarados perdidos a favor do Estado, entre o mais, as vantagens de facto ilícito típico, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Durante muitos anos, a justiça não esteve atenta para esta consequência jurídica do crime, havendo inúmeras acusações e decisões que não se pronunciavam relativamente à perda de vantagens.
Felizmente, os vários operadores judiciários estão a interiorizar que os mecanismos de recuperação de ativos são uma dimensão imprescindível da realização da justiça e a atuar em conformidade.
Com efeito, o Estado de Direito não pode deixar de preocupar-se em reconstituir a situação patrimonial que existia antes de alguém, através de condutas ilícitas, ter adquirido vantagens patrimoniais indevidas.
O crime não é título aquisitivo da propriedade!
Assim, o Ministério Público não goza de qualquer discricionariedade na promoção da perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens decorrentes da prática do crime. Ao invés, age por direito próprio, exercendo o ius puniendi estadual no interesse supra individual da comunidade. O Ministério Público deve, pois, promover todas as medidas de confisco legalmente previstas para remover as vantagens dos agentes dos factos ilícitos típicos.
No nosso exemplo, o Ministério Público, aquando da dedução da acusação, deveria ter promovido a perda de um milhão de euros e deveria ter lançado mão das medidas de garantia patrimonial existentes na lei, entre o mais, o arresto preventivo de bens.
Em julgamento, o tribunal declararia perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial de um milhão de euros que, através de facto ilícito típico, foi adquirida e condenaria o arguido no respetivo pagamento, além da pena principal que no caso tivesse lugar.
Só assim, podemos dizer que o crime não compensa!
Note-se que dizemos factos ilícitos típicos, não crimes. Por uma razão muito simples: a lei dispõe que a perda tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
Na verdade, o confisco não tem caráter sancionatório, não é uma pena, mas apenas uma mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao direito. Em causa está, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita, que não goza de tutela jurídica.
Voltando ao nosso exemplo: o que fazer com um milhão de euros declarado perdido?
Terá de ser, necessariamente, reinvestido no sistema de justiça criminal e no combate ao crime. É premente que o Estado (Ministério da Justiça e Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça) invista em estruturas que administrem, de forma eficiente, não só os bens com também os valores apreendidos.
Só assim, permitimos que a Justiça funcione e contribua também para o crescimento económico do nosso país.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.