Certo dia, acompanhando Bruno Vieira Amaral, biógrafo de José Cardoso Pires, jantei com Edite e Ana, mulher e filha (uma das duas filhas) do escritor biografado. A conversa ia tão boa como a comida alentejana quando me apercebi de que aquelas mulheres evidenciavam, face aos direitos herdados e sobretudo ao respetivo papel enquanto herdeiras de um grande escritor, uma postura diferenciada daquela que, por razões por certo ligadas ao hábito, eu considerava expectável.
A dado momento, Vieira Amaral começou a agradecer o fácil acesso à informação e Ana Cardoso Pires, sem lhe dar tempo para terminar, respondeu: “o espólio tem de estar disponível para quem se interesse por ele, não há que complicar o que já não é nada fácil na divulgação de um autor que já não dá entrevistas”. Logo de seguida, explicou que a parte que lhe cabia dos direitos de autor estava toda reinvestida em material de escritório, fotocópias e deslocações para divulgar a obra do pai. E acrescentou: “como deve ser”. Não sei se, de boca aberta, detive no ar o garfo espetado numa batata assada, mas a comida – e eu estava esfomeado – passou a interessar-me muito menos e a conversa muito mais.
Instantes depois, por entre uma ou outra achega minha e de Bruno Vieira Amaral, ambos habitualmente palavrosos, Ana Cardoso Pires atirou: “os herdeiros acham que a memória do autor tem de ser limpinha, clarinha”. O que ouvia interessava-me a tal ponto, que, no final do jantar, pedi a Ana para voltarmos a conversar sobre o assunto, coisa que fizemos mais do que uma vez, já não à mesa de um restaurante eborense, mas ainda assim não deixando eu de fazer bom proveito das doses generosas de informação que me serviu.
Para Ana Cardoso Pires, que tem um percurso ligado sobretudo à imprensa e à tradução, os herdeiros dos escritores tendem a perspetivar essa condição de uma (ou de mais do que uma) das seguintes três formas, bem reveladoras do seu espírito desassombrado: “ou pensam em fazer dinheiro com os sapatos do defunto”; ou, por serem conservadores, receiam “revelar segredos escondidos, sempre imaginados amesquinhadores da imagem do dito e, por arrastamento, dos sobrevivos, que conviveram com as vergonhas em divulgação”; ou então “veem-se a ter finalmente visibilidade, à conta de uma estrela que ofuscou a presença deles enquanto viveu”.
A mais velha das filhas de Cardoso Pires considera que a obra do pai – do Zé, como lhe chama – deve entrar em domínio público. É da opinião de que a obra não é dela. Nem dela, nem da irmã. Os direitos de autor, explica-me, devem valer para a mãe, “que investiu seriamente na realização do José Cardoso Pires”», mas, depois disso, porque “a produção do autor não é nossa”, considera que o que de melhor poderia acontecer era estar acessível a todos, para não cair no esquecimento. “Há que trabalhá-la ou então entregá-la a quem o faça”, diz-me. Foi precisamente o que fez quando abordada por Bruno Vieira Amaral. Entregou e nada mais disse. Não quis interferir, não quis opinar, não quis ler. Mas porquê? A resposta surge de novo de forma pronta: “quem sou eu para dizer a um ensaísta, ou realizador, ou quem quer que seja, quem foi o pai? Eu não tenho esse direito”. Porquê, volto a perguntar. “Os herdeiros terem que ter opinião sobre o que se faça sobre o escritor é colocarem-se no lugar do escritor”. E a Ana não quer esse papel, depreendo. “Eu não sou o escritor depois de morto, não sou um zombie do escritor!”.
Quando José Cardoso Pires morreu, as herdeiras perceberam que o espólio tinha mais do que valor afetivo para as pessoas que com ele conviviam e que poderia interessar a mais gente. Mas que destino lhe dar? Primeiro, havia que organizar tudo. Distinguir livros de papéis. Saber tudo o que existia de cada obra: as várias versões, as anotações sobre cada edição, as recensões, os estudos. Juntaram tudo o que havia no contexto de cada livro. E havia muita coisa. Cardoso Pires guardava material para reutilizar, porque, explica-me a filha, “achava que poderia fazer falta”. O escritor «passava coisas de um sítio para o outro, de um setor para o outro», conforme achava que poderia servir para determinado romance, para um artigo, ou uma intervenção pública. O que criou um grande caos, difícil de compreender e ordenar. Mas foi já organizado que chegou às mãos do biógrafo Bruno Vieira Amaral e, antes disso, à Biblioteca Nacional, para grande espanto do diretor, quando Ana lhe entrou porta adentro, para lhe entregar de mão beijada o espólio de José Cardoso Pires. Entregou tudo o que achou que fazia falta – originais, cartas, apontamentos, etc.
Não creio que, a partir da postura das herdeiras de Cardoso Pires, possa criar um modelo que me sirva de opinião no que toca ao assunto herdeiros de escritores, mas estou certo de que, no contexto do autor em apreço, aquele que Bruno Vieira Amaral tão bem retratou em Integrado Marginal, os princípios fazem sentido. Ana Cardoso Pires considera que tem o dever de divulgar o mais possível a obra, de tentar ser o mais interveniente possível nesse domínio. E não se demite desse papel. Sobretudo porque, ao querer e permitir que a usem, sabe que estão a dar vida ao que o pai deixou. Quando a questionei a propósito do exemplo de Pilar del Río, respondeu-me assim: “abdicou de tudo o que era a sua vida para promover a obra de Saramago”. E acrescentou: “Acho bem. Se eu fosse de outra fibra se calhar fazia isso. Acho que era bom para obra do Zé”. Mas de que fibra é feita Ana Cardoso Pires, a mulher que me disse que uma biografia “é um maná e não uma coisa de meter medo”? Ou ainda que “os factos que possam levantar sobre a vida do Zé dificilmente nos surpreendem. As interpretações são as de cada um – nós temos as nossas”?
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