Enquanto regresso penso que no fundo não foi assim tão longa a viagem. Um mês é muito pouco. Um mês é só tempo de inspirar apenas uma única vez, e hoje, aqui no avião, enquanto volto, começo a primeira expiração e sinto que os meus pulmões aguentavam muito mais viagem e que ainda ontem estava aqui, no mesmo assento, a partir para o outro lado do mundo sem saber o que ia encontrar. Ainda ontem o sol vermelho do ar denso de Pequim ao fim da tarde era o primeiro dia deste mês a caminhar. Eu perdido em Pequim e Pequim a olhar-me com indiferença e arrogância. Andei muito e devo ter perdido uns quilos. Sou daqueles que acha que uma cidade se conhece a caminhar mas na China as cidades têm a escala correspondente ao tamanho do país, e do Partido, e as ruas nunca acabam, e Tiananmen parece nem ser feita para seres humanos mas para um gigante Big Brother mostrar a sua grandiosidade ao seu frágil povo, e a Cidade Proibida é um Olimpo construído para isolar algum semi-Deus das impurezas terrenas. Em Pequim comprei umas sapatilhas Nike vermelhas, mais baratas do que o normal, e comecei a andar. Desci para as ruas milenares de Pingyao, subi aos templos vertiginosos das montanhas de Mianshan, passeei pelos bairros muçulmanos de Xi’an e visitei os eternos e fieis guerreiros de terracota. Percorri o festival de flores em Kaifeng e pelos canais de Suzhou visitei o museu de I. M. Pei e os jardins onde todos já estivemos num qualquer sonho. Cheguei a Shanghai e olhei-a estupefacto do ponto mais alto da cidade. Voei até Guilin e descansei entre os montes e escarpas de Xingping. Voltei a Hong Kong, que continua perfeita. Voltei a ler ‘bem-vindo’ à chegada ao sempre nosso Macau. Reencontrei os meus amigos e companheiros de banda, tocámos juntos e juntos estamos a regressar.
Tudo isto, num segundo só, e nesse segundo todos os montes, caminhos e precipícios onde me debrucei para reparar na incrível criatividade da natureza. Nesse breve segundo todas as cidades, aldeias, praças, ruas, becos, escadas onde pensei como o homem é capaz do melhor e do pior. Nesse segundo só, todos os quartos onde dormi e as canções que escrevi também nesses quartos talvez no fim de um dia cheio ou de manhã quando a inspiração flui no corpo descansado. Nesse breve segundo os capítulos do livro que levei e a forma como me marcaram porque os li no sítio certo, na altura certa, e os sublinhei como que a implorar à minha fraca memória para os guardar bem, não só aos capítulos, mas a toda a luz refletida no branco das páginas, luz limpa do sol da Ásia, ou filtrada pelo smog das cidades, ou luz do néon do quarto do hostel onde estava naquela noite com a casa de banho onde o duche é daqueles que molham tudo porque não existe resguardo mas que passado um dia é normal porque fiz daquele quarto péssimo o quarto perfeito e a minha casa, como se dois dias chegassem para deixar de ser turista num país tão diferente de mim. Num segundo só, todas as pessoas que conheci ou com quem apenas troquei um olhar ou um sorriso ou até insultos como aconteceu com aqueles barqueiros que foram incapazes de me levar para a outra margem do rio Li quando o dia estava quase a escurecer e eu não tinha maneira de voltar a pé pelo meio da selva…
Num segundo só todo este planeta que é a China cheio de países e povos e gente boa e gente má e tão frustrante como fascinante e que eu quase nem comecei a conhecer… E hoje, este avião, e esta interminável hora que falta para chegar a Lisboa. Parece que ao mesmo tempo que viajar se torna viciante, o regresso depois de decidido, é sempre longo demais.