Não sei se já falei do meu jardim. Há mais de dez anos comprei uma casa em Lisboa, pequena, mas com jardim, também pequeno, mas de tamanho suficiente para ficar uma selva se eu não lhe tocar. Foi antes da crise económica ainda com um empréstimo em boas condições. A casa já mudou bastante desde que a comprei. Logo que cheguei fiz algumas obras e ao longo do tempo fui fazendo melhoramentos em algumas divisões. Mas ao contrário do resto da casa, que eu percebo minimamente graças à minha formação em arquitetura, o jardim veio a revelar-se um organismo vivo, cheio de tensões e reações, que hoje vejo como estando diretamente ligado à minha vida e seus múltiplos movimentos, desde que cheguei até hoje. Todos temos fases boas e fases más, todos temos pequenos recantos interiores que tentamos trabalhar, por vezes de maneira errada. Pois bem, o meu jardim estava à minha frente, todos os dias, e eu não o via como espelho.
Naquela altura o jardim estava com bastante bom aspeto: o “querido mudei a casa” tinha lá ido pouco tempo antes, quando os donos antigos lá viviam, e havia um relvado com ar saudável, um duche, as paredes azuis claras, uma pérgula com ar imponente apoiada num barrote gigante vindo do Alentejo, uma nespereira, três tangerineiras, e algumas lanternas penduradas nos ramos das árvores. Foi emocionante mudar-me para ali, naquela altura poucos amigos meus viviam sozinhos e haver aquele recanto para passar tardes e noites fez daquele jardim um sítio muito concorrido. Era altura boa da minha vida, os Toranja estavam no seu auge, a casa estava sempre cheia, eu devia ter os meus 24 anos e o ponto alto eram os churrascos de aniversário com sessenta e tal pessoas metidas em sessenta metros quadrados. Não vou falar da minha vida, apenas do inverno em que a tempestade quebrou o barrote e a pérgula caiu. Acordei com o fundo do jardim em ruínas e vi que claramente as coisas não estavam bem. Fui comprar o meu primeiro machado e parti tudo aos bocados para poder tirar o lixo de casa. Entrou mais luz, mas ficou um vazio. Aos poucos, no canto oposto, a relva começou a secar por causa da sombra das árvores. Experimentei de tudo, desde cascas de árvore a gravilha, passando por tentar plantar à mão, depois tapetes de relva… mas nada funcionou. A nespereira já grande demais enchia o jardim o ano inteiro de milhares de folhas secas e nêsperas podres. Claro que sempre fui cuidando do jardim como podia, mas muitas vezes não sabemos a direção certa e tudo cresce da maneira errada… houve fases bonitas, mas pouco estáveis, e quando olhava, tudo tinha voltado a um estado selvático e triste, de tal forma que há uns anos atrás quase desisti do jardim e deixei de fazer festas de anos. Olhava de vez em quando, passava a máquina pela relva doente, e pouco mais.
Não foi gradual, foi de um dia para o outro e lembro-me da manhã em que me vi no jardim. Às vezes basta uma conversa com um amigo, uma viagem, um amor. Não foi lenta a viragem, foi repentina e crucial. Não foi claro o princípio, era já inverno e eu sabia que tudo ia demorar a crescer. Cortei a nespereira e no vazio do fundo instalei uma nova pérgula. Na parte seca da relva um novo empedrado de granito negro, e a toda a volta canteiros e trepadeiras para rejuvenescerem a tinta velha do muro. Depois do escuro a primavera chegou, seguida do verão, e as trepadeiras cresceram pelas paredes e começaram a cobrir a pérgula de madeira clara. Os canteiros floresceram, a pedra assentou e pelo meio cresce uma pequena planta chamada “não te metas na minha vida”. Quinta-feira passada fiz um míni jantar de anos, e o melhor da vida é ter a casa cheia de amigos no jardim.