Hoje joga a seleção. Não ligo a futebol. No fundo isto é só um jogo: há um campo com muita relva, duas balizas e 22 indivíduos a andar atrás de uma bola na qual não podem tocar com as mãos, e têm que a empurrar para dentro da baliza adversária. É um jogo. Mas hoje quem joga é a seleção e, por mais estranho que pareça visto de fora, é no futebol que o “orgulho em ser Português” de repente acorda do seu profundo sono e se levanta como se nunca tivesse adormecido. Sim, um país fascinado com tudo o que vem “do estrangeiro”, que vê como mais evoluído, inteligente e valioso, de repente vê-se com a oportunidade de mostrar ao mundo que afinal estamos vivos, e somos, e existimos, até ver… Todos se enchem de bandeiras e se sentam em frente aos ecrãs como se, por momentos, em vez de 11 fôssemos 11 milhões em campo. Durante 90 minutos toda a nossa história de força e resiliência e bravura volta a brotar-nos dos poros e somos guerreiros de novo, e somos conquistadores de novo a rirmo-nos das frotas inimigas que há centenas de anos nos ultrapassavam em tamanho mas que não nos vergavam, e íamos em frente, mais espertos e eficazes e portugueses. Hoje joga a seleção e eu, que não ligo a futebol, ando com o meu cachecol e quero comprar aquela camisola igual à do Ronaldo porque, no fundo no fundo, é ele o centro desta bandeira que todos os dias nos serve de inspiração e exemplo, mesmo quando a seleção não joga. Ronaldo que, vindo do nada, subiu ao cimo do mundo sabendo desde o princípio o que ia ser. Ronaldo que vindo do nada e contra todos foi quebrando o sono do país adormecido, corrupto e desacreditado, e mostrando-lhe o que ainda resta do sangue lusitano.
Hoje joga Portugal contra a “grande” França, na batalha final depois de tanto esforço, e Cristiano Ronaldo acaba de sair do jogo, aos 20 minutos, golpeado na coxa em plena batalha, e as lágrimas que lhe escorrem são as de toda a equipa e de Portugal inteiro que assiste impávido como se o sonho lhe escorresse pela cara, como se o sonho nos escorresse pela cara, e todos tentámos trazê-lo de volta à batalha, a sangrar, e todos percebemos que era impossível enquanto o carregámos juntos para trás das trincheiras. Portugal em silêncio como que desamparado, e a batalha por travar.
Não sei bem o que aconteceu a seguir. Lembro-me de injustiças, de golpes baixos, de todos os ventos contra. Lembro-me de Rui Patrício como muralha e de Nani como escudo. Lembro-me de Portugal inteiro em campo, sem acreditar na vitória, mas sem vergar, sem nunca vergar. Lembro-me dos franceses a perderem a força, a passarem de confiantes a estupefactos, como há centenas de anos atrás. Lembro-me de Fernando Santos a distribuir habilmente as armas que lhe restavam. Lembro-me de Cristiano Ronaldo, ao seu lado. Lembro-me de Éder, um soldado discreto e sem distinções a quem os franceses não deram muita atenção, a conseguir esconder até chegar ao outro lado uma carabina de uma só bala que repentinamente saca de dentro da armadura e dispara, como se toda a sua vida tivesse acontecido para aquela revelação. E que tiro! De um momento para o outro Portugal inteiro era uma bola de futebol dentro de uma baliza. Uma bola de futebol dentro de uma baliza era todo um país adormecido, a acordar. Como nos filmes, pelas mãos do jogador mais marginalizado, o país mais marginalizado era o primeiro. De frente para a Europa, somos os primeiros.
Se conseguimos sem o Cristiano? Acho que não. Não por ser o melhor jogador do mundo, mas pelo seu gigantesco coração português, que nunca saiu de campo, e que nos inunda de orgulho e nos relembra de tudo o que já fomos, e que, se quisermos, voltamos a ser. Espero que depois disto, Portugal se lembre que não começamos nem acabamos num jogo de futebol.