O primeiro CD que tive como meu foi-me dado pela minha tia. Chamava-se Beach Boys Concert. Até este dia, tudo o que se ouvia lá por casa datava claramente de bastante antes do meu nascimento: música clássica, fado, muita música sacra, jazz, lembro-me da Ella Fitzgerald a passear a voz durante as nossas horas de almoço ao fim de semana; o cançonetismo francês com Jaques Brel a suar enquanto lhe saiam palavras das quais eu apenas percebia a emoção. Assim, este álbum de 1964, ao vivo, acabou por ser o meu primeiro contacto não só com a música “moderna” mas também com outro tipo de sensação que desconhecia antes: ao carregar no play, logo depois do anúncio dos “fabulous beach boys!” e ao mesmo tempo que o primeiro riff de guitarra me transportava para o universo surfista da 60´s California, uma parede de milhares de fãs ansiosos e histéricos inundava o espetro sonoro! Mais incrível ainda era que durante todo o álbum os berros daquelas criaturas pareciam aumentar de tal forma que se tornava praticamente impossível conseguir acompanhar sequer a música por trás da berraria. Quanto mais alto ficava o som mais me via dentro de um estádio gigante algures do outro lado do oceano e em mim a imagem clara e completamente nova desta festa monstruosa e emocionante feita de música. Que tesouro era este que agora tinha nas mãos com o poder de causar tamanho descontrolo a tanta gente? Lembro-me que rapidamente comecei a gostar mais da música que dos berros e que cada canção me trazia toda uma nova paleta de cores: o meu corpo mexia, saltava, os meus lábios acompanhavam os refrãos que mal entendia, e a emoção, e o rock, e o twist, e o sol, e a praia, e os sorrisos todos dentro daquele disco e todo aquele sítio longe do meu, onde tudo era possível! Ontem saímos de casa pelas 12h00. Roadtrip à antiga com paragem obrigatória pela Mealhada e seguindo para o Porto.
Chegámos, largámos as malas em casa, e arrancámos para o Parque da Cidade. Quarenta e cinco minutos antes do concerto começar estávamos sentados em frente ao palco, onde uma imagem no ecrã anunciava o que todos esperávamos com a naturalidade de quem ainda não pensou bem sobre o assunto: Brian Wilson Celabrates Pet Sounds 50th. À hora marcada, pela mão dos seus roadies, entra um velhinho de cabelo branco, meio desorientado, que se senta ao piano. À medida que todo o nosso aplauso de agradecimento ia crescendo, eu via-me de novo a receber aquele meu primeiro CD das mãos da minha tia.
“How loud can the girls yell? And how loud can the boys yell??”. Nos primeiros acordes de California Girls não houve histeria. Sentiram-se apenas os milhares de pessoas à volta daquele palco a tomarem consciência do presente inimaginável que foi para nós a vida daquele senhor. Ao longo de todo o concerto, todos percebemos o grau da dádiva e o monstruoso talento. Vi-me de novo em casa dos meus pais, depois de aprender a trabalhar com o leitor de CD, a devorar cada novo som, cada nota de guitarra, cada ritmo da bateria e pormenor de percussão, cada harmonia, cada canção tão simples e despretensiosamente perfeita. Vi à minha frente o meu princípio, o meu organismo inteiro a gritar “é por aqui” e eu de 12 ou 13 anos sem sonhar o que o futuro me traria e que ali estava a começar a minha escola. “God only knows what I’d be without you” cantámos todos em coro, baixinho, calmos, num obrigado a cada palavra. Saiu tão apagado como entrou, como o nosso avô de chinelos numa manhã perto do fim. Acho que todos o quisemos abraçar naquele momento. Os milhares de fãs aos berros na minha memória, no fundo, sabiam bem o que estavam a testemunhar em 1964.