“Infelizmente, embora a resposta tenha sido efetivamente clara, simples e direta, há alguma dificuldade em atribuir-lhe justificadamente o quarto dos epítetos que aplicou à afirmação, na medida em que a correlação precisa entre a informação que comunicou e os factos, na medida em que podem ser determinados e demonstrados, é tal que causa problemas epistemológicos de magnitude suficiente para impor aos recursos lógicos e semânticos da língua inglesa um fardo mais pesado do que se pode razoavelmente esperar que suportem”, disse Sir Appleby. “Epistemológicos? O que está a falar?”, questionou James Hacker. “O senhor mentiu”, resumiu Appleby.
Esta passagem clássica de Sim, Senhor Primeiro-Ministro, de 1986, resume na perfeição a relação difícil dos políticos com a verdade. O cardeal Mazarino, ministro de Luís XIV, chamou-lhe a arte de simular e de dissimular. Maquiavel disse que eram meios legítimos para atingir nobres fins. Mas a democracia trouxe um contrato social mais apurado: entre o povo e os seus representantes deve imperar a regra essencial da verdade e da transparência. Já na Grécia Antiga, os governantes populistas e mentirosos eram expulsos da Polis e ostracizados, tal não era reputada como grave a desfeita sentida pelos que eram ludibriados por falsas declarações. Não há muito tempo, ser apanhado a mentir era uma desonra e uma vergonha para um homem sério, políticos incluídos – afinal, fechavam-se contratos com apertos de mão e a palavra tinha o valor de uma assinatura com reconhecimento notarial.
Só que, entretanto, chegou-se a estes dias da pós-verdade em que factos são contorcidos de mil formas e intenções publicamente declaradas têm o prazo de validade de um gelado a derreter ao sol. Mentir, iludir, fingir, equivocar, aldrabar passaram a ser o prato do dia. E tantos o fazem que já ninguém se indigna. Pelo meio, perdeu-se a vergonha, outrora um importante fator de autorregulação social.
Sempre existiram, chamemos-lhes assim, alterações supervenientes das circunstâncias, é um facto. Em matérias legais, podem ser, em determinadas situações, fatores de modificação ou resolução de contratos. Em 1996, Marcelo Rebelo de Sousa disse que nem que Cristo descesse à terra seria candidato a líder do PSD – mas aparentemente Cristo desceu mesmo e ele acabou por concorrer e ganhar. Em 2003, Paulo Portas, então ministro do Estado e dos Negócios Estrangeiros, emite um comunicado em que declara que apresentou “um pedido de demissão que é irrevogável”, e acrescenta: “Obedeço à minha consciência e mais não posso fazer.” Pedro Passos Coelho não aceita a demissão, negoceia com ele e Portas torna-se vice-primeiro-ministro, revogando a decisão irrevogável.
Já ludibriar eleitores em campanha é um estágio acima na escala das “tangas” políticas. Nestes períodos, os candidatos apresentam-se e dizem ao que vêm, e é com base no que é afirmado que os eleitores devem poder escolher. Nesta fase do caça-voto, como na do namoro, muitos seguem a via das promessas vãs e irrefletidas. Algumas vezes, nem chegam a estar cientes de que não poderão cumprir o que asseveram, noutras sabem-no perfeitamente, mas fazem-no na mesma. Os exemplos são tantos que não temos espaço nestas linhas. Citamos dois: António Costa prometeu há sete anos “que todos os portugueses terão um médico de família atribuído”, algo que não acontece até hoje, e Carlos Moedas fez uma campanha autárquica a prometer acabar com a ciclovia da Almirante Reis, e retirou essa proposta adiante para não acalentar “jogos partidários”.
No topo do ranking estão os ultimatos, declarações do género: “Se isto não acontecer, garanto que faço aquilo.” Para ir por aqui é preciso ter coragem, determinação e coluna vertebral firme. Os políticos que seguem por esta via têm de estar cientes de que a parada é alta: é essencial que sejam capazes de arcar com as consequências caso o jogo de alto risco lhes saia desfavorável.
O que nos leva até à Madeira. Durante meses, Miguel Albuquerque, como tantos outros dirigentes laranja, mostrou pouca convicção de princípios, ao admitir poder vir a fazer acordos com o Chega. À medida que as sondagens lhe foram sendo altamente vantajosas, foi subindo de tom de forma taticista: começa por dizer que não fará acordos com o Chega nem “alimenta o crocodilo” e acaba a reiterar amiúde, para evitar a desmobilização do eleitorado, que se não conseguir a maioria absoluta, não faz acordos com ninguém e vai-se embora. Transcrevo só uma das suas frases, por ser clara como a água: “Se não ganhar as eleições, demito-me. Não vou fazer entendimentos, portanto, ou votam nesta maioria e querem que prossiga o caminho que temos seguido, ou não votam nesta maioria. Se não votarem nesta maioria, vou-me embora”, disse o presidente do Governo Regional, citado pelo Diário de Notícias da Madeira.
Contados os votos na noite eleitoral, para surpresa geral, faltou-lhe só um deputadozinho. Com o PAN ali tão perto, foi meter a palavra lá longe… e dar o dito por não dito. É grave Miguel Albuquerque negociar um acordo de entendimento com o PAN? Nem por sombras. É desejável, a bem da estabilidade? Talvez até seja. Só é grave que faça exatamente o oposto do que, estupidamente e sem qualquer necessidade, declarou publicamente que iria fazer. A sua palavra, daqui em diante, tende para um valor facial de zero.
No meio da agitação, e a suar em bica, Luís Montenegro fez as mais desastrosas declarações do seu mandato à frente do PSD. Numa noite em que o PSD perdeu, em coligação, a maioria absoluta depois de ter dramatizado a necessidade de a conquistar, disse que era um momento de alegria e de vitória. Retirou conclusões para o continente em termos futebolísticos: “Montenegro 1, Costa 0.” E ainda assegurou que “o PSD, nem na Madeira nem no País, fará um acordo com o Chega, porque não vai precisar”. Oxalá que, em precisando, não tenha de vir também a meter na gaveta a promessa.
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