Depois de Angela Merkel durante a crise financeira da década passada, há uma nova odiosa na Europa: chama-se Christine Lagarde, lidera o Banco Central Europeu e passou a ser o alvo de ataques que vêm de todos os lados: das populações endividadas, de chefes de Estado metediços, de populistas anti-Europa e até mesmo de políticos aparentemente sensatos. Lagarde reúne o pleno porque personifica o aperto que significa para as famílias e para os Estados a subida implacável das taxas de juro para tentar combater a inflação, que se situa nos 5,9% na Europa – há dias, o BCE aumentou em mais 25 pontos-base as taxas diretoras pela décima vez consecutiva para 4%, o valor mais elevado de sempre, para desilusão de todos os que esperavam que a subida fosse agora travada.
A inflação é como um tumor num organismo: há poucos fenómenos mais social e economicamente disruptivos. E debelá-la custa muito. A subida generalizada dos preços, se prolongada, afeta todos – embora uns (os mais pobres e/ou os mais endividados) mais do que outros –, deixando cicatrizes difíceis de ultrapassar. Tem potencial para mudar uma região ou mesmo o mundo, escreveu Martin Wolf, economista chefe do Financial Times. Na Alemanha, por exemplo, este trauma perdura há um século: desde a hiperinflação de 1923 que abalou os alicerces da República de Weimar, foi passando de geração em geração a ideia de que a estabilidade dos preços é um valor prioritário a prosseguir.
Como dizia Mário Centeno ao El País esta semana, a inflação é mais socialmente injusta do que as medidas que utilizamos para a combater, que são duras e prejudicam a economia. “O problema é que a inflação também faz isso”, explicava, mostrando-se solidário com a decisão do órgão, apesar de ter manifestado antes a expectativa de que as subidas cessassem. A tónica estava no ponto certo: a subida das taxas é dolorosa, mas uma inflação alta é ainda pior.
É verdade que a instituição cometeu, no início da crise, um dos maiores erros desde que foi criada, em 1998, na avaliação da situação inflacionária, que via como apenas transitória, atrasando-se no início das respostas em relação à Reserva Federal norte-americana e ao Banco de Inglaterra. Deu depois uma reviravolta e mostrou-se determinada em debelar o cancro. E agora, algures na encruzilhada, chegou à fase mais complexa do processo, perante correntes de sentido contrário, cada uma a puxar para seu lado: saber quando parar. Sobretudo num bloco com economias bastante desiguais em termos estruturais e onde os impactos das taxas altas se fazem sentir de formas muito distintas. Morrer da cura ou da doença, eis a questão.
Decida a instituição o que decidir, atirar ao BCE e a Christine Lagarde é fácil. Dá sempre jeito atirar aos “maus” de Frankfurt e de Bruxelas ou ter um bode expiatório para quando as condições financeiras se deterioram, o que faz agravar os descontentamentos e as convulsões sociais internas. E ainda quando Lagarde, sem qualquer condescendência nem tato político, insiste em dizer que “os governos devem continuar a retirar medidas de apoio à economia”. Algo que, mesmo que seja tecnicamente verdade, custa ouvir e marca a diferença de mensagem e de atitude construtiva que Mario Draghi mostrou, quando disse três palavras simples, mas revolucionárias, que salvaram o euro (“whatever it takes”, garantindo que o BCE faria o que fosse preciso para salvar a moeda única).
Lagarde não tem o mesmo arrojo nem a mesma gravitas de Draghi, é um facto. Mas ver governantes ou outros responsáveis a atirar publicamente sobre ela agora, pondo em causa a autoridade do BCE e a oportunidade das suas medidas, fragilizando a sua credibilidade na condução da política monetária, só destrói mais a imagem do projeto europeu e ajuda aos populismos. A confiança nas instituições é um ativo precioso – não ajudem a cavar a sua (nossa) sepultura.
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