A psicologia do poder é um tema fascinante. Para tentar perceber o que se passa na Rússia é preciso compreender a cabeça de Vladimir Putin. O seu quadro mental está mais próximo do dos antigos czares russos do que do dos líderes democráticos ocidentais, que ele vê como fracos. Desiludido com a ordem mundial pós-Guerra Fria assente em pactos de não agressão e nos princípios da democracia liberal, Putin rege-se pelos valores e métodos do velho imperialismo russo. Para ele, a Rússia só será poderosa se for grande e militar e economicamente inabalável – o Estado que se impõe pela dimensão e pela possança.
Como líder, é um autocrata nacionalista e conservador que se vê como uma espécie de czar do século XXI: o durão que se impõe pela força e é implacável com os inimigos. A sua autoridade vem desse ideário de vigor e invencibilidade que ele faz questão de cultivar através da sua própria imagem: o macho alfa em grande forma, que caça tigres e salmões com as próprias mãos e que monta a cavalo em tronco nu na Sibéria. O destino fatal de críticos – de Anna Politkovskaya ou Boris Nemtsov aos muitos oligarcas e generais que caíram de janelas – ajuda a construir esta aura de homem forte que não deixa espaço a contestação nem a vozes dissonantes. Tal como Ivan, o Terrível, não se importa de ser visto como sádico e cruel, porque prefere ser temido a ser amado, a velha máxima dos líderes autoritários.
Há razões de fundo para tal. A Rússia, que hoje abrange um vastíssimo território que faz fronteira com 14 países da Europa e da Ásia e se estende por 11 fusos horários, precisou sempre de um elemento unificador para etnias e necessidades muito distintas. Desde sempre que o principal elemento unificador foi a ideia de um império grandioso, um chão comum liderado com firmeza por um chefe predestinado. Os seus compatriotas medraram neste caldo cultural em que as lideranças – sejam as dos czares sanguinários, as dos líderes soviéticos que se impunham pelo terror ou a do contemporâneo e forte Putin – são profundamente autoritárias. Entre grande parte da população russa, a fraqueza não é bem vista nem tão-pouco tolerada.
Tudo isto é importante, porque esta semana, durante 24 vertiginosas horas, assistimos ao maior desafio à liderança de 23 anos de Vladimir Putin à frente da Rússia. Ainda é incerto o desfecho da insurreição conduzida pelo outrora aliado Yevgeny Prigozhin, que o deixou, com as suas tropas, a menos de 200 quilómetros de Moscovo depois de um ataque-relâmpago. Este é um filme em movimento, do qual ainda só vimos as primeiras cenas, mas uma coisa ficou clara: há mudanças em curso na Rússia.
Rios de tinta foram escritos sobre como caem os impérios, desde o romano aos mais recentes. Só no século XX aconteceu o colapso de sete grandes impérios – a China mandarim, a Alemanha nazi, a Áustria-Hungria, a Turquia otomana, o Japão, o Império Britânico e a Rússia czarista e depois a soviética. Numa coisa todos os académicos parecem concordar: estes poderios não afundam com um só acontecimento isolado, vão enfraquecendo ao longo dos tempos e caem de “podres”. Mesmo quando um golpe fica para a posteridade como causa, tal não acontece sem uma sucessão de episódios que aconteceram antes e levaram a esse momento de rutura.
24 de junho de 2023 foi o dia em que o mito de Putin caiu. O império não foi abaixo, mas os seus alicerces, assentes na imagem de um homem forte, foram fortemente abalados. Ao contrário de Zelensky – o líder que disse uma das mais bravas tiradas de guerra de sempre (“não preciso de boleia, preciso de munições”) –, em vez de armamento, Putin pediu boleia para São Petersburgo. Fugiu, escondeu-se do inimigo que acusou de dar uma “punhalada nas costas” do seu povo, e foi depois obrigado a fazer-lhe concessões, oferecendo um acordo desesperado para deter um avanço que foi visto, por todos, como demasiado rápido e demasiado fácil. Prigozhin afrontou o grande Putin e saiu ileso, provavelmente com os bolsos cheios com muitos milhões, como mercenário que é. O que o rege, claro, é o dinheiro e o poder, não quaisquer princípios ou valores, e muito menos ideais democráticos.
Putin foi humilhado, não apenas pelos avanços fáceis e pela necessidade de dar o braço a torcer, mas também pela forma como a população saudou e acolheu o seu inimigo como um herói. Os discursos de Putin, na segunda e na terça-feira, foram risíveis, um poço de contradições. Falou em solidariedade civil quando ela não existiu, agradeceu por travar o avanço a quem antes tinha chamado traidor, elogiou as tropas russas quando elas se mostraram incapazes de deter os avanços ameaçadores. O implacável e invencível Putin, o herdeiro dos czares, mostrou toda a sua vulnerabilidade e apequenou-se aos olhos dos russos e do mundo.
Putin está agora nas mãos de Prigozhin, enleado nos seus jogos militares e de poder. A ideia de que é mais fácil do que parece tomar Moscovo e destronar Putin é inapagável. Mas o que pode vir aí, seja a resposta de um líder acossado ou um novo cabecilha, tem potencial para ser pior ainda do que existe hoje. E isso deve preocupar-nos a todos – e muito.
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