Quando a próxima revista chegar aos leitores, já haverá novo inquilino em Belém. Vêm aí cinco anos (o mais certo é serem dez) com um Presidente que vai ser bem diferente de todos os seus antecessores.
A menos que Marcelo Rebelo de Sousa mude de personalidade aos 67 anos e a todos surpreenda, o primeiro magistrado da Nação não vai parecer que o é. A rutura com a circunspeção de Cavaco Silva vai ser um dos aspetos mais marcantes desta transição. O homem de Direito, que abraçou os jornais para fazer política e que na política sempre tentou fazer jornalismo – passando recados, mensagens e criando factos –, vai estar na primeira linha das atenções dos media. Não por acaso, já alguém disse que jornais e televisões deveriam deslocar equipas de correspondentes para Belém, pois um só jornalista a seguir o Presidente não será suficiente.
Marcelo Rebelo de Sousa chega ao palácio envolto em simpatia, saído de umas eleições em que se passeou com bonomia. Gosta de negociar, de trocar, de contrapropor, e neste momento tem a chefiar o Governo alguém que também cultiva, como poucos, a negociação política.
Rebelo de Sousa é Marcelo sem que Eanes alguma vez tenha sido António; tal como Sampaio não era Jorge e Cavaco, muito menos, Aníbal. Soares foi quem mais perto esteve de ser tratado pelo nome próprio, mas Mário só vingou entre os amigos socialistas. Marcelo é Marcelo.
O Presidente não vai ser esfíngico, não estará sempre cercado por um cordão de polícias. Não falará só com distanciamento, pompa e circunstância, não viajará acompanhado de séquito, não se refugiará na solenidade do cargo.
A Presidência será dessacralizada. Isso será bom? Essa é a grande questão: tirar os aspetos majestáticos que têm acompanhado a função pode ser vulgarizá-la; se contribui para uma aparente democratização do cargo, também pode levar à perda de prestígio e à banalização do Presidente (o único cargo que, por alguma razão, ainda é escrito com maiúscula nos jornais). Sem a auréola, só resta mesmo o prestígio que o protagonista for capaz de dar à função. Pode ser pouco.
Aí está mais uma polémica, daquelas que têm tantos fãs. Desta vez foi desencadeada pela bastonária dos Enfermeiros, num programa da Rádio Renascença, quando disse que viu “casos em que médicos sugeriram administrar insulina” a “doentes para lhes provocar um coma insulínico” e que “quem trabalha no SNS sabe que estas coisas acontecem por debaixo do pano”. Faz lembrar Marinho e Pinto, quando o então bastonário dos Advogados, com outro vigor, dizia que havia corrupção em Portugal e logo havia quem lhe exigisse que apontasse o dedo e concretizasse.
As atuações são semelhantes, embora os crimes em causa tenham gravidade bem distinta. Em ambos, os bastonários falaram de práticas que não se sabe se são correntes, mas que se sente que ocorrem. E, quando se tem a perceção de que as coisas acontecem, é difícil provar que a convicção é infunda. A verdade – não que eu alguma vez tenha ouvido diretamente, conheça casos reais, saiba de exemplos concretos, possa provar ou afirmar mais do que aqui fica escrito –, a verdade é que andam por aí conversas – também não sei de quem, deve ter sido no autocarro já que o bastonário dos Médicos nunca as ouviu – referindo sobredosagens de insulina, morfina ou potássio. Além de situações – também seguramente inventadas – em que foram decididos cortes no tratamento para permitir a chegada da morte.
Está na hora de falar claro. Pode ser-se contra a eutanásia ou a favor ou ter dúvidas. Mas venha o debate sério para que, se alguém a pratica “debaixo do pano”, tenha plena consciência de que a sociedade não quer que o faça; ou então que se estabeleça quem, quando, onde e como a pode realizar. Não se pode estar sempre a olhar para o lado quando surgem problemas sérios pela frente