Uma pessoa pensa que pode confiar numa rocha esférica com 12 742 quilómetros de diâmetro e que pesa 13 milhares de milhões de triliões de toneladas, e afinal descobre que vive num jogo de Jenga. Parece que o planeta não é mais que isso, agora. E cada peça que se tira faz ruir tudo. Alguém resolve guisar um morcego na China: a civilização tal como a conhecemos acaba. Um marinheiro encalha um navio no Canal do Suez: o comércio mundial fica interrompido. A ideia de que o mundo era demasiado grande, maciço e áspero sempre me aterrorizou. Agora que se percebe que o mundo é muito delicado e frágil, julgo que fiquei com mais medo ainda. Não há maneira de o mundo me agradar – o que levo sinceramente a mal.
Não invejo o esforço que os historiadores do futuro terão de fazer para compreender o nosso mundo. No dia 23 de Março de 2021, um navio encalhado bloqueou o Canal do Suez e, a 29 do mesmo mês, finalmente desencalhou. O primeiro aspecto que surpreenderá os vindouros é a maré de azar em que nós nos encontramos. Primeiro, uma pandemia que asfixia o comércio. Depois, um encalhamento que dá o golpe de misericórdia em negócios que já estavam moribundos. Não sei o que virá a seguir, mas estou a escrever isto fechado no quarto, debaixo da cama. O segundo aspecto que talvez dê que falar nos próximos séculos é o carácter tristemente prosaico de tudo isto. As pessoas do século XIX serão lembradas pelo esforço de construir a maravilha da engenharia que é o Canal do Suez. Nós, no século XXI, seremos lembrados pelo desencalhamento de um navio de contentores. É um pouco menos nobre. E, segundo acabei de confirmar, é verdade que, antes de bloquear o canal, o navio desenhou na água, com o percurso da sua rota, a imagem de um pénis. Creio que não merecíamos isto. As pessoas já têm o mau costume de olhar com altivez para os antepassados. Sentem que são mais evoluídas, mais inteligentes, mais sofisticadas. Quando os nossos netos olharem para nós e descobrirem a aflição que vivemos por causa de um navio que desenhou um falo antes de destruir o comércio mundial, creio que vão rir bastante. Isto são as nossas calças à boca-de-sino. Proponho apagarmos tudo do Google e nunca mais falarmos disto.
(Crónica publicada na VISÃO 1465 de 31 de março)