Instalou-se um qualquer vírus na nossa comunidade. Algo desprovido de empatia, orgulhoso da sua ignorância e do seu desprezo pelos valores da democracia e até do mais básico humanismo.
Bastava estar minimamente atento para se perceber que esta espécie de mal estava a instalar-se, mas foi mais rápido do que se esperava.
1. A quantidade de reações de puro ódio à prisão dos quatro ativistas portugueses pelo Exército israelita foi assustadora. Houve quem associasse esse ódio apenas à figura da Mariana Mortágua e o enquadrasse na luta ideológica ou partidária.
Já é suficientemente mau que a simples diferença de perspetiva política dentro de uma sociedade democrática levasse a discursos tão desprezíveis, mas parece que já aceitamos isso como o novo normal. Tão normal que até um primeiro-ministro mantém no Governo um ministro da Defesa que põe em causa a segurança de cidadãos portugueses detidos ilegalmente no estrangeiro e os denuncia como uma espécie de delegados de uma organização terrorista.
Como normal também parece ser que um Governo não chame o embaixador de um país que tem um ministro que insulta portugueses e uma deputada para lhe pedir satisfações. Ou que deixa material de guerra, que neste momento serve diretamente para assassinar populações civis, passar no nosso território (depois de ter dito de forma solene que jamais o faria) ou um presidente da Assembleia da República assobiar para o lado enquanto uma deputada é detida por um país estrangeiro.
Estas pessoas têm especiais responsabilidades e deveriam assumi-las defendendo valores que juraram defender. Preferem, no entanto, respaldar o que parece ser um sentimento prevalecente em largos setores da nossa comunidade. E é isso o que mais me assusta. Desde a existência de dezenas de milhares de pessoas que num nojento abaixo-assinado declararam que queriam que Mariana Mortágua ficasse em Gaza até à quase unanimidade de gente com presença no espaço público que se identifica como de direita a criticar ferozmente os quatro portugueses que foram numa missão humanitária a Gaza, passando por um verdadeiro mar de insultos nas redes sociais, valeu tudo.
E não me esqueço da maneira como o líder do PS fugiu à questão. Se José Luís Carneiro entende que embarcar no porão da nau da infâmia por achar que é o ar dos tempos vai ajudá-lo a recuperar eleitorado, é bom que se desengane.
Pois, pois, polarização e tal. Quando uma comunidade não se esquece das suas divisões normais para defender alguém, seja de que setor político for, que toma uma posição contra um massacre que envergonha todo o mundo, e que daqui a uns anos nos interrogaremos como deixámos acontecer, está mesmo muito doente.
2. O que hoje se passa na casa da democracia é muito mais do que a chegada de 60 arruaceiros que insultam, difamam, mandam beijos a deputadas e têm comportamentos racistas e misóginos.
Aquela conduta tem um objetivo claro: desprestigiar a mais importante instituição democrática. Todos sabemos que bastava a André Ventura levantar um dedo para que aquelas pessoas se comportassem de forma decente.
Quanto mais o caos estiver instalado, mais vingará o discurso de que a democracia está doente e de que precisa de um homem forte que ponha o País na ordem. Basta, aliás, juntar as mentiras sobre corrupção, segurança e a invasão de estrangeiros para termos o cocktail perfeito.
Nem o objetivo nem os meios são legítimos, mas são visíveis e Ventura nem os disfarça. Para que o número de circo aconteça na Assembleia da República é indispensável a colaboração do seu presidente e Aguiar-Branco tem sido inexcedível no seu apoio. Chegou ao cúmulo de, no episódio do beijo, que o boçal Filipe Melo desempenhou desde a mesa da Assembleia da República, ter dito que ia investigar o caso com o dito ao seu lado e sem dizer o seu nome. Temos assim um presidente da Assembleia a colaborar efetivamente com a quem quer desprestigiá-la com os objetivos conhecidos.
Tudo isto é suficientemente mau, mas perceber que esta gente tem um apoio popular cada vez maior que aplaude quão maior e mais violento for o desmando, que vai espalhar gente em barda nas autarquias e que nelas vai fazer o que está a fazer no Parlamento torna tudo muito assustador.
3. Num artigo que publiquei no site desta revista tento demonstrar que a investigação que foi feita ao juiz Ivo Rosa na sequência da sua participação no mais importante julgamento da nossa democracia é um feroz ataque ao princípio da separação de poderes, à democracia liberal e ao regular funcionamento das instituições.
A investigação a um juiz de instrução com base numa denúncia anónima sem pés nem cabeça diz-nos que quem manda de facto no Ministério Público não aceita que os seus poderes sejam limitados e serve assim de aviso a quem se atrever a pôr em causa qualquer decisão desta fundamental instituição.
Os juízes já estão muito condicionados pela aliança Ministério Público/principal tabloide português, que promovendo julgamentos no tribunal da opinião pública faz com que eles fiquem expostos a uma censura social que inevitavelmente os fragiliza. Agora ainda mais frágeis estão.
Volto a este caso porque verifico que, sendo tão flagrantemente atentatório das bases do Estado de direito, foi rapidamente esquecido. Confesso, não me surpreende.
Os órgãos de comunicação social acham que as pessoas não estão motivadas por estes temas e atiram isto para uma página interior e esquecem o assunto. Quando o jornalismo troca o interesse público de informar e explicar por aquilo a que as pessoas dão ou não importância, deixa de cumprir a sua função, mas parece que o caminho está a ser exatamente esse.
Depois, a completa ausência de comentários dos responsáveis políticos mostra o que já sabemos: o medo que têm do Ministério Público e da aliança com o tabloide. Se se conseguiu derrubar um governo com um parágrafo, que dúvida existirá sobre a capacidade de destruir qualquer pessoa que se oponha ao seu ilimitado poder?
Nem o Presidente da República, em fim de mandato e sem nada a perder, disse o que quer que fosse sobre esta vergonha sem nome.
Alguém sabe de algum abaixo-assinado sobre isto? Alguém viu nas redes sociais alguma coisa? Pois…
O adormecimento das comunidades face a valores estruturais das democracias deixa espaço para todos os vírus. Sim, estou muito pessimista.
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