O preço do cabaz de alimentos essenciais subiu 29% entre as vésperas da invasão da Ucrânia e fevereiro de 2023. É uma brutalidade, que os portugueses pagam com sacrifício, pobreza e fome. Num quadro em que a subida de preços dos alimentos ultrapassa em muito o valor da inflação, o Governo avançou com ações de fiscalização para perceber porquê. A investigação da ASAE aos supermercados e hipermercados já resultou em 51 processos-crime por especulação. Nas três maiores cadeias de supermercados em Portugal, foram detetados casos com margens de lucro brutas acima dos 50%. É o caso da cebola.
Há um ano, as cebolas não faziam chorar tanto. A crise inflacionista e a subida dos juros do crédito estão a esmagar as famílias portuguesas, com os salários estagnados. Ao mesmo tempo, vemos aumentos recorde nas margens de lucro numa série de setores – não apenas o alimentar. É o reflexo de uma escolha. A estratégia do Banco Central Europeu para travar a inflação – subida de juros, contenção dos salários – assim o dita. No entanto, a estratégia choca agora com os dados do próprio BCE: de acordo com as conclusões de um encontro recente na Lapónia entre técnicos da instituição, as margens de lucro têm pesado mais na subida dos preços do que os salários e impostos. Por outras palavras, o aproveitamento, pelas empresas, da subida geral dos preços para aumentar os seus próprios lucros tem sido crucial no disparar dos preços.
Ora, esta realidade obrigaria a uma inversão de política e narrativa. De acordo com a Reuters, será mote de debate já esta semana, na cúpula do BCE. Vários economistas o têm defendido, desde o primeiro momento: travar a inflação deveria passar pelo controlo das taxas de lucro e não pelo que tem sido a aposta do BCE: subir juros, conter salários, empobrecer os cidadãos. No atual modelo, estão as famílias a pagar os lucros extraordinários. Se a depauperação radical das populações – não apenas das mais pobres, mas também das classes médias – coincide com a acumulação de riqueza no topo, falamos de um caso de transferência de fundos. Numa escala macro, o dinheiro de quem mais precisa está a ser transferido para o bolso de quem mais tem. As democracias europeias poderão não resistir ao prolongamento desta injustiça. E Portugal?
A subida dos preços no setor da alimentação é o principal vetor da inflação no país. Segundo a DECO, as frutas e os legumes, por exemplo, subiram perto de 35% no espaço de um ano. Até à data, o aumento dos preços tem sido justificado com o aumento dos custos da energia, de produção e transporte. Mas como poderá ser, então, que o abrandamento na inflação, que a descida destes custos, não travem a escalada dos preços dos alimentos? A suspeita recai sobre as práticas comerciais. A investigação da ASAE em curso encontrou margens médias de lucro entre os 20% e 30% em produtos como o açúcar branco ou o óleo alimentar, 30% e 40% nos ovos, nas febras, nos legumes e mais de 50% no caso da cebola. Será, portanto, urgente averiguar se há especulação. O ministro da Economia, Costa Silva, promete mão pesada caso haja lucro ilegítimo. “Vamos ser absolutamente inflexíveis se existirem práticas abusivas”.
De acordo o secretário de Estado do Turismo, Comércio e Serviços, Nuno Fazenda, a fiscalização terá como objetivos: 1) perceber se há especulação nos preços dos produtos alimentares ao longo da cadeia (da produção à venda final) e 2) detetar discrepâncias dentro dos supermercados, entre os preços afixados nas prateleiras e o valor pago na caixa. Nesta primeira fase, o inspetor-geral da ASAE, Pedro Portugal Gaspar, adianta que se comparará o preço de aquisição pelo retalhista e o preço final de venda ao público de cada produto. De seguida, olhar-se-á para a cadeia de preços dos alimentos em busca de vestígios de especulação – desde a sua produção até à venda ao consumidor. Teremos de esperar para ver.
Esperando justiça e punição exemplar de quem infringe a lei, de pouco nos servirá diabolizar as cadeias de supermercados. Para já, urge retirar lições maiores sobre o papel dos lucros no combate à inflação. Não é deriva ideológica – são os dados do BCE. Fará sentido deixar que os pobres e as classes médias financiem mais acumulação de lucros? Quem beneficia com esta política? O debate é tão ético como económico.
Há tempo, à minha frente no supermercado, uma senhora foi apanhada a esconder legumes na mala. Saiu a chorar de vergonha. Não são as cebolas que fazem chorar.
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