As agressões bárbaras a um cidadão nepalês em Olhão e a morte de dois cidadãos indianos num incêndio em Lisboa reacenderam o tema da política de imigração em Portugal. Uma vez mais, o modo superficial como vários dirigentes e opinion makers abordam a matéria escancara o óbvio: não existe um debate sério sobre imigração no país. A total desproteção dos imigrantes não-europeus em Portugal – agravada no caso dos trabalhadores do Bangladesh, da Índia, do Nepal, do Paquistão – choca-nos e revolta-nos, caso a caso, acendendo pavios sempre curtos e inconsequentes. Dentro de duas semanas, estaremos a falar de outra polémica qualquer.
Quando, em novembro, escrevi sobre a rede de escravatura e tráfico de seres humanos descoberta em Beja e Cuba, houve quem se levantasse contra a ideia de que o Qatar existe no Alentejo. À época, ainda o clamor sobre os atentados aos Direitos Humanos no Qatar não tinha sido suplantado pelas paixões em torno da carreira de Cristiano Ronaldo. O mesmo ocorreu quando, no ano anterior, um surto de infeções Covid fez soar o alarme em Odemira e desvendou as condições sub-humanas em que trabalhadores rurais imigrantes viviam no litoral alentejano. A indignação foi chuva de pouca dura, de tal forma que o problema persiste.
O ataque cobarde ao trabalhador nepalês Nirmal Benyia por um grupo de jovens de Olhão é a ponta de um iceberg onde a desproteção sistémica se materializa num caso concreto, filmado e intolerável. De acordo com a investigação da PSP, os jovens que atacaram Nirmal Benyia são em parte menores, bem enquadrados socialmente e já perpetraram outros ataques contra imigrantes em condições semelhantes, para os roubar. Nirmal tinha chegado a Olhão na véspera e levava tudo o que tinha na mochila, naquela noite. Estava desprotegido. É assim que estes cidadãos vivem em Portugal: desprotegidos. Submetidos a processos burocráticos lentos e angustiantes, forçados a aceitar a exploração e os trabalhos ilegais, a viver em condições indignas, sem apoio à integração, sem acesso aos serviços públicos, sem segurança ou proteção judicial, deixados à sua sorte. A violência, a exploração e a usurpação dos direitos mais fundamentais começa na desproteção do Estado e reproduz-se nas ruas, nas estufas e nos armazéns onde trabalham porque estas pessoas não têm como se defender. Sem a proteção do Estado, continuarão a ser vítimas.
A atenção dedicada ao caso pelo Presidente da República, o ministro da Administração Interna e o presidente da Câmara de Olhão contribuiu para o eco mediático e fará andar as investigações. A imediata deslocação de Marcelo Rebelo de Sousa a Olhão para visitar e pedir desculpas à vítima do ataque foi um momento feliz do seu mandato e uma lição de Humanismo pelo exemplo. Naquele gesto, naquele abraço, Marcelo representou também quem não votou em si. (Destoando das principais figuras do seu partido, aliás, mas adiemos esse tema). O ímpeto para pedir desculpa, em nome de Portugal, foi o que senti perante a violência insuportável das imagens deste ataque. Desculpa-nos, Nirmal. Só que as desculpas não se pedem, apenas. Diz-se por aí que também se evitam.
A máxima de que “as desculpas não se pedem, evitam-se” era repetida por uma das professoras mais antipáticas que tive. É uma resposta cínica e embirrante aos pedidos de desculpa sinceros – e, acima de tudo, sinal de indigência pedagógica quando usada em debates com crianças de dez anos, que deviam estar a aprender a importância de assumir responsabilidades. Pedir desculpa é importante. É, contudo, um gesto que deve resultar numa ação. Em Portugal, começará por abandonar, no discurso, o mito dos brandos costumes, da hospitalidade universal, do paraíso da imigração. Começará por mobilizar recursos para promover eficácia na resposta aos vistos, transparência para proteger os cidadãos das máfias e justiça para garantir a prevalência dos Direitos Humanos nos processos migratórios. Começará por acompanhar e fiscalizar as condições de trabalho e de habitação para proteger e garantir direitos básicos a todos os cidadãos em solo nacional.
Evitar a violência, a barbárie e a desumanidade passará por implementar políticas públicas que garantam dignidade a quem vem viver e trabalhar em Portugal. Assim se evitam pedidos de desculpa. Passará por clarificar a distribuição de competências no processo de imigração – no imediato e pós-extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) –, desde a entrada no país ao acompanhamento no terreno para garantir dignidade e segurança. Passará por financiar e equipar organismos e instituições intermédias. Passará pela revisão séria da política migratória portuguesa.
As desculpas pedem-se, mas também se evitam.
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