Fala-se hoje como nunca da Justiça para se acrescentar logo a seguir a palavra “crise”.
Mas fala-se a mais das vezes com um conhecimento limitado da situação de facto abordada.
Curioso é que o tema da crise da justiça é um tema de sempre, porque desde sempre se fala em crise na justiça.
Nas palavras de António Pires de Lima, “havemos sempre de ter de falar acerca da justiça e que esta temática jamais terminará, havendo sempre razões para murmurar dela – a justiça por que pugnamos constitui um ideal que nos impõe um caminhar permanente, na certeza de que aquilo que se alcança hoje, pode – e deve – ser ainda melhor no dia de amanhã; é por isso que a justiça está sempre em crise e sempre estará enquanto humana”.
O problema é que, nos tempos atuais, a perceção por parte dos cidadãos do estado da justiça e as críticas que lhe são feitas surgem não de uma avaliação global e ponderada com base em indicadores objetivos, mas de uma análise superficial, tantas vezes tendenciosa e manipulada, de pouco mais de uma dúzia de processos mediáticos, com que se esgota o tema da justiça nos meios de comunicação social, nas redes sociais e, o que é mais preocupante, no próprio discurso político.
Os únicos casos de justiça que são notícia são em regra do foro penal e como é bom de ver, os crimes mais noticiados são os que envolvem figuras com notoriedade pública. Esses processos acarretam normalmente uma investigação e julgamento mais complexos, por diferentes razões, e neles se esgotam todas as possibilidades processuais, até porque tantas vezes interessa o protelamento do processo tendo em vista uma eventual prescrição dos crimes.
Esses são os processos de que se fala, e os processos de que mais se fala são os processos que mais demoram.
Só que dos milhares de processos que têm um tempo de duração razoável e todos os dias terminam nos nossos tribunais pouco se diz porque obviamente não são notícia.
Por outro lado, quando se fala no estado da justiça, não se fala da degradação do edificado dos Tribunais; da falta e obsoletismo dos equipamentos; da falta de funcionários judiciais e do seu envelhecimento; ou da falta de magistrados.
O que se fala é da morosidade dos tais processos, dos pretensos “abusos do Ministério Público”, do excesso de recurso a detenções ou a meios intrusivos de prova.
E a solução parece ser única: controlar o Ministério Público, controlar os abusos do Ministério Público.
Para quê? Para que a justiça não bata à porta. Para que a justiça não incomode alguns.
As propostas para a justiça não são para resolver os seus verdadeiros problemas, que os tem e muitos, mas para condicionar a atuação do sistema de justiça.
Da análise dos dados obtidos nos sucessivos relatórios publicados todos os anos no site da PGR, podemos afirmar que o MP tem melhorado a qualidade e a eficácia da sua capacidade de resposta em todas as áreas de intervenção, mesmo num quadro cada vez mais deficitário de recursos.
Porém, tal como referia Pires de Lima, “a justiça por que pugnamos constitui um ideal que nos impõe um caminhar permanente, na certeza de que aquilo que se alcança hoje, pode – e deve – ser ainda melhor no dia de amanhã”.
Por isso, é importante uma melhor organização interna do Ministério Público e uma maior otimização dos recursos existentes.
Isso pressupõem, por um lado, uma estratégia ao nível da Procuradoria-Geral da República e, por outro, de forma essencial, um controlo efetivo sobre os meios e recursos existentes e sobre as opções de investimento.
Tal só se consegue com a autonomia financeira do Ministério Público, através da existência de um orçamento próprio, negociado pela PGR na Assembleia da República e que permita que o investimento seja efetuado de acordo com as prioridades do Ministério Público e não com as prioridades políticas do Ministério da Justiça.
Exige ainda que seja o Ministério Público a ter a direção efetiva sobre a investigação criminal e o poder de decidir e definir as prioridades da investigação, enquanto única entidade na investigação criminal dotada de independência e autonomia.
O quer se disse não exclui a necessidade de existência de uma cultura de autoavaliação e autocrítica, quanto aos processos cuja delonga ou desfecho não foi o expectável, no sentido de proceder ao seu estudo e com base nele redefinir estratégias processuais ou formas de procedimento.
A melhoria da qualidade do serviço prestado aos cidadãos deve ser sempre o objetivo e por isso o esforço para o alcançar tem de estar sempre presente.
Mas esse objetivo não depende de qualquer reforço de controlo por parte do poder político, porque esse, não nos enganemos, não tem qualquer objetivo de melhorar o serviço prestado, mas apenas conter o Ministério Público sob a sua esfera de domínio e conformação.
Sem um Ministério Público independente, nunca teremos uma justiça independente.
MAIS ARTIGOS DESTE AUTOR
+ O discurso político e os ataques ao Ministério Público e à PGR
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.