A refeição começava sempre da mesma maneira. Os meus avós de costas para a mesa, em frente a uma Última Ceia, a recitar o Pai Nosso. E acabava quase sempre da mesma maneira. Ainda mal a sopa tinha sido servida e já eu me envolvia numa discussão que subia de tom. “À mesa não se fala de política”, repetia a minha avó Emília, entredentes, quase sussurrando para nos fazer baixar o tom. Inútil. O avô Alberto elevava a voz, exasperava-se. Eu não o deixava sem resposta. Era pouco mais do que uma criança, mas entrava no jogo, tentando desmontar-lhe os argumentos. Nunca nenhum dos dois se dava por vencido. E foi assim que comecei a gostar de política.
O avô Alberto era um salazarista convicto. Cresci a ouvir falar do corporativismo. Todos os natais, a conversa acabava na história do saneamento político do meu avô por causa da Revolução, nos sustos da Reforma Agrária, nos horrores do PREC. Soube primeiro do 28 de maio do que do 25 de Abril, que era naquela casa uma espécie de data maldita, que quase nos tinha lançado para o precipício. Mas eu sabia que essa era só uma parte da História, mesmo que em pequena quase só o intuísse e fosse preciso crescer para encontrar outros relatos vivos, outras testemunhas, outros prismas.
Só quem andou muito distraído nos últimos 50 anos pode achar que há datas consensuais no país. Em muitas outras mesas de consoada, outras crianças terão crescido como eu a ouvir relatos de um colonialismo bondoso e de um regresso à metrópole descrito como uma espoliação. Em muitas outras casas, outros meninos terão ouvido enaltecer uma lei e uma ordem fundadas no respeitinho e na ideia de que cada um é para o que nasce. A nem todas terá ocorrido pôr em causa essas narrativas. Nem todas terão percebido como foi dura a conquista da liberdade e como Abril foi uma porta que se abriu a caminho da paz, do pão, da saúde, da educação, da habitação.
Acontece que muitas pessoas, nascidas como eu depois da Revolução, sentiram na pele o que Abril trouxe. Muitos desses meninos passaram a ter uma casa digna desse nome, três refeições por dia e uma escola que as levou aonde aos seus pais nunca teria ocorrido chegar. Lembro-me bem da sensação de chegar à Universidade e perceber aí quão rara era a minha condição de menina que vinha de uma família onde não faltavam licenciados e bacharéis há várias gerações.
Eu percebi o privilégio. Talvez o tenha só intuído. Mas entendi que o lugar onde se nasce e a cor que se traz na pele nos faz chegar pelo menos a meio de um caminho, que para outros tem tantas pedras. E percebi. Talvez o tenha só intuído, que Abril metia medo precisamente a quem tinha visto ser posto em causa o privilégio, esse direito de nascença, que aos que o têm parece ser tão natural.
Não se percebe nada se não se perceber isto. Os consensos são fabricados, artificiais, construídos em cima do que se cala. A democracia é outra coisa. A democracia é o regime que se constrói nas maiorias, em respeito pelas minorias. A democracia precisa da igualdade (não só formal, mas também material) para respirar. É a retirada de direitos e o aumento das desigualdades que está a fazer desabar aquilo que levou quase meio século a construir.
Nada é eterno. Durante 48 anos, o meu avô acreditou viver naquele que era aos seus olhos o melhor e o mais justo dos regimes. Nesses anos, milhares de portugueses viveram na miséria, calados, com medo, com fome de tudo, mas sobretudo de liberdade. Eram muitos, mas não foram os suficientes. E talvez nunca tivessem sido, se a guerra colonial não tivesse tornado absolutamente insuportável o que até aí a maioria aguentava, mais ou menos resignada.
Temos de olhar o passado nos olhos. Lembrar o que alguns querem que seja esquecido, mesmo que doa. E perceber que a História está a ser continuamente refeita à medida de quem venceu. O que importa é saber para onde queremos ir, sem esquecer as lições de quem tanto sofreu para nos trazer até aqui. Eu não vou calar o que sei.