A semana passada estava a ser consumida por uma polémica sobre o 25 de Abril, quando, suprema ironia, o tema da bufaria institucional na Câmara Municipal de Lisboa ocupou, e bem, o espaço da nossa indignação.
Ficámos a saber que a câmara de Lisboa se dedica a entregar a todos os que lhe pedem, da China à Venezuela, passando pela Rússia, os dados pessoais de quem, pela liberdade, se manifesta em Lisboa contra a política nesses países que são, em muitos casos, ditaduras que eliminam fisicamente os adversários políticos.
Passados vários dias, o presidente da câmara não pediu desculpas a ninguém pela afronta à liberdade, continua em funções e ninguém, nem uma alma, assumiu dignamente responsabilidade nenhuma pela delação, que é seguramente o mais abjeto e desprezível dos comportamentos que a Humanidade alberga.
Como escrevia Miguel Torga, somos um povo que acorda indignado, moureja indignado, se deita indignado, mas a quem falta o romantismo cívico da agressão…
Tinha 4 anos no 25 de Abril, sou neto de comunista e grato a todos os que me deixaram ainda a liberdade de, por exemplo, aqui escrever o que me apetece. Mas, confesso, sempre me fez um bocadinho de confusão como raio se aguentou por tanto tempo a maior ditadura da Europa, protagonizada por gente tão fraquinha como aquela que a História nos mostrou.
A explicação parece estar muito no País obsequioso do respeitinho que sempre fomos e, infelizmente, continuamos a ser; há sempre uma desculpa para o comportamento de qualquer “doutor”, e isso explica muito, até mais do que a falta de cultura efetiva de oposição e a paupérrima alternância política que nos sufocam.
Ultimamente, se calhar até por falta dessa alternância, caminhamos para a impunibilidade total. Um estrangeiro morre no aeroporto às mãos da polícia e o ministro abriu um inquérito para continuar em funções. O telemóvel dos opositores de Putin foi-lhe entregue pela câmara de Lisboa, e o presidente abriu um inquérito para não se demitir.
São funcionários, não são políticos. Não tiveram a dimensão para a responsabilidade que lhes foi entregue. Como uma criança, que há muito avisada não fez os TPC, Medina ocultou quando soube, culpou uma lei inexistente, ignorou a violação grosseira de várias outras e acabou coberto por um primeiro-ministro que teve o despudor, a total falta de vergonha, de dizer que era um problema do “balcão da câmara”.
Num país mais sério, depois de uma destas, eu bem sei para que serviria o balcão da câmara. Por cá, quase 50 anos depois do 25 Abril, já não há cidadania que se choque com a vileza destes cavalheiros. Espero que as celebrações que aí vêm nos acordem e que, de uma vez por todas, seja possível sacudir de cima de nós esta União Nacional que mudou de protagonistas mas só pensa com os métodos do passado.
Em Portugal, passado este tempo todo, a delação continua a ser o que era: a arma dos subservientes. E quando o presidente de câmara não tem a grandeza de assumir responsabilidades, aí está a delação mais premiada que eu por cá já vi até hoje.