N a minha primeira noite no Hospital Júlio de Matos, em julho de 2022, desabei num pranto gigantesco. Tinha passado os dois dias anteriores entre o Santa Maria, o Beatriz Ângelo e o São José, até que fui internada no célebre hospital psiquiátrico de Lisboa. Um surto psicótico, do qual guardo apenas flashes, levara-me às urgências, pela mão do meu marido e dos meus irmãos.
Lembro-me de me sentir confusa na cozinha e, depois, de episódios esporádicos nos vários hospitais. Num desses raros momentos de consciência, já medicada, questionei uma enfermeira se não seriam sintomas da doença bipolar. Há anos que os conhecia, uma vez que o meu pai sofre do mesmo mal, e nos últimos dois eu própria enfrentara uma depressão persistente. O psiquiatra já me tinha alertado para a possibilidade e não me enganei. Em breve, percebi naquele instante de lucidez, também eu iria ser diagnosticada com bipolaridade.
A vontade de chorar, porém, só chegaria ao ver-me deitada no Júlio de Matos. Talvez tenham sido as grades nas janelas que me fizeram sentir presa. Ou as memórias antigas das visitas ao meu pai, marcadas por aquele ambiente pesado de pessoas alheadas da realidade e em visível sofrimento. Se calhar, era já alguma noção de que iria ali passar uma temporada, longe das minhas filhas, longe de tudo, sem perspetivas de dar a volta à situação. Numa das noites, o que me confortou foi uma doente que entrou no meu quarto e, sem nada dizer, me abraçou até eu adormecer.
Mais calma, comecei a aproximar-me dos outros. Senti que podia ajudá-los e, com isso, ajudar-me também a mim. Meti conversa com duas senhoras mais velhas, afetadas pela demência. Ouvi-as, ofereci-lhes carinho. Não importava que pouco depois já não se lembrassem de mim. Um dia posso ser eu, impossível não sentir empatia.
Uma mulher anorética, mais nova do que eu, estava um farrapo quando chegou, ninguém podia aproximar-se. Consegui falar com ela. Outra senhora que apareceu tinha tentado suicidar-se. Chorava desalmadamente e aproximei-me. Era uma que jogava muito bem à bola. Um dia, foi jogar para o corredor com um homem africano que fez uma bola com uma meia. Os chinelos serviram de balizas e até os enfermeiros ficaram a assistir. Foi um momento de alegria para toda a gente, e que espelha a evolução das pessoas ali dentro. Chega-se muito em baixo e, depois, a maior parte vai recuperando e já sai aos abraços e a trocar números de telemóvel.
Ninguém pode ter consigo o dito aparelho, enquanto ali está internado. Há uma hora por dia em que podemos receber telefonemas, mas para o número da secretaria. Ficávamos todos no corredor, à espera que chamassem o nosso nome. No período de visitas, também podemos usar os telemóveis dos familiares para realizar videochamadas, sempre na presença de auxiliares. Pelo menos no meu piso, não estávamos autorizados a frequentar espaços exteriores. Os tempos livres são passados nas duas salas de convívio, com jogos de tabuleiro, cartas e livros, ou a circular pelos corredores.
“Estive por um fio”
A entreajuda dos doentes é tocante – a partilha de produtos de higiene, por exemplo, é uma constante; enfermeiros e auxiliares são amorosos. Se o facto de me sentir útil me fez pensar que mais rapidamente iria voltar para as minhas filhas, começar a escrever sobre a experiência no Júlio de Matos também haveria de ter o seu efeito terapêutico, não só durante os meus 21 dias de internamento mas também nos meses que se seguiram. Decidi escrever um livro [Maldita Pandemia – Do Confinamento ao Júlio de Matos] a partir desses registos. Por um lado, para contar que é possível sair do fosso, que não podemos desistir, e, por outro, para mostrar que o Júlio de Matos não é o bicho-papão que se pensa, mas um sítio que ajuda as pessoas a recuperar.
Um senhor que conheci lá já tinha tentado o suicídio várias vezes e marcou-me pela sobriedade com que parecia lidar com a depressão, confiante de que as coisas iam melhorar, apesar do histórico de recaídas. Também eu tinha estado perto do último passo.
Sou professora de Ciências Naturais e de Biologia e Geologia, e durante o primeiro confinamento, em 2020, vi-me num beco sem saída. Com as minhas duas filhas e os meus dois enteados em casa, todos em idade escolar ou pré-escolar, além do meu marido, que também é professor, o tempo começou a não chegar para tudo. Dava aulas online a seis turmas, cerca de 160 alunos, e comecei a ter de fazer noitadas para cumprir com as minhas responsabilidades. Para agravar, sempre fui perfeccionista no trabalho. Às tantas, já não dormia quando me deitava, a pensar no que faltava fazer. A privação do sono levou à depressão, conjugada com um estado de ansiedade em que a dor é de tal forma avassaladora que parece que estão a esmagar-nos. Por mais de uma vez, estive por um fio para terminar com o sofrimento.
Achamos que não há alternativa. Como dizem os psiquiatras, tive ideação suicida estruturada, e nesses momentos nem as pessoas que nos são mais queridas parecem conseguir tirar-nos do sufoco. É assustador. Se posso, ainda assim, deixar um conselho é o de pedir ajuda às pessoas que gostam de nós e o de aceitar sem medo as consultas e a medicação.
É isso que tenho feito neste último ano. Ainda estou a aprender a lidar com a doença, mas tenho-me sentido bem, sem crises, tal como me tinham dito no dia em que recebi alta. O descanso é fundamental e, por isso, os meus dias precisam de ser mais curtos. Claro que não gosto dos efeitos secundários dos medicamentos, como o ganho de peso e a queda de cabelo, mas para tentar atenuá-los faço caminhadas de três quilómetros para a escola e tratamentos para o cabelo.
Desde a pandemia que não dou aulas e estou ansiosa pelo regresso, agora em setembro. Adoro ser professora e, apesar de um certo receio de já não ter a mesma estaleca – sinto a capacidade de raciocínio mais lenta, em virtude da medicação –, quero muito voltar a desfrutar da minha vocação. Não tenho medo do que possam dizer sobre a minha doença. É mais forte o desejo de regressar à minha vida normal.
Depoimento recolhido por Rui Antunes