Não é de estranhar esta aproximação. Basta lembrar algumas obras que remontam ao século XVI, como é o caso de Gil Vicente, ou aos nossos dias com especial destaque para O Marinheiro, de Fernando Pessoa. E vem muito a propósito falar de Pessoa, porque ele desenvolveu algumas linhas teóricas importantes relativamente ao possível encontro entre o drama e a poesia.
Nos seus apontamentos (conservados inéditos e que principiaram a ser publicados por Jacinto do Prado Coelho e Georg Lind na década de 1960) encontramos uma pista. Eis as suas palavras: “Verificaremos que da poesia lírica à dramática há uma gradação contínua. Com efeito, e indo mesmo às origens da poesia dramática – Ésquilo por exemplo – será mais certo dizer que encontramos poesia lírica posta na boca de diversos personagens”.
A poesia lírica está relacionada ou concentra-se nas emoções, nos sentimentos. Por isso é marcadamente subjetiva. Ora Pessoa considera que essa subjetividade pode ser ultrapassada quando a poesia lírica se tornar tendencialmente dramática. É o que ocorre se um poeta, mediante uma despersonalização, se afasta dos desvios ou desvarios dessa subjetividade. E assim se compreenderá melhor o caso dos heterónimos…
Atinge-se, então, a poesia dramática. A poesia ganha a forma do drama (e aqui importa considerar que essa “forma” pode ser a do poema propriamente dito ou a da representação ou dicção teatral). Tudo isto nos remete para a publicação de um livro extremamente sugestivo em si mesmo e pelas questões de ordem estética que levanta. Intitula-se Teatro e o seu autor é Manuel António Pina.
Nele se reúne a sua obra teatral numa edição preparada por Maria João Reynaud e João Luiz. Ambos nos dão informações relativas às diferentes peças escritas para o grupo teatral “Pé de Vento”. João Luiz sobretudo tendo em vista a sua intervenção de encenador; Maria João Reynaud, através de um texto inicial que serve de prefácio (e noutras ocasionais notas) dá-nos uma lúcida e esclarecedora abordagem de como se vai dar uma passagem “da palavra poética à cena”.
O teatro de MAP pode ser visto a partir de uma evolução marcada por duas fases diferentes, as quais sofrem mesmo o que se diria um corte que, como veremos mais adiante, é lícito apontar para o ano de 1997. Sobretudo as 11 peças teatrais iniciais dirigem-se intencionalmente a um público infanto-juvenil, embora nas entrelinhas se encontre sempre o que é passível de atingir um leitor adulto. No fundo é um texto que se abre para um leitor sem idade, que vai fruir situações marcadas pelo humor, o jogo das palavras, o sem sentido em que se desenvolve um exercício verbal que é já de natureza intelectual.
A partir da peça Os Piratas– levado à cena precisamente em 1997 – o envolvimento teatral ganha uma dimensão dramática que se dirige para um novo espaço expressivo. Tematicamente, nele como que se insinua que é através do sonho que se encontram situações que se aproximam ou distanciam da realidade de tal modo que o que era antes o sem sentido passa a ser já o da ambiguidade poética.
Estes dois espaços verbais, que aliás se aproximam, mantém registos que lhes são próprios, até porque as primeiras peças teatrais são escritas em verso, sendo extremamente importante nestas o papel da rima que é habilmente explorado. Destaque-se a primeira dessas peças, considerada como “uma fantochada para miúdos e graúdos” e apresentada com este título: O maior intelectual do mundo. Ora nela e em muitas outras posteriores fica traçada uma verdadeira “arte poética”. O seu principal personagem apresenta-se insolitamente nestes termos: “Este é eu, o nome dele é Inventão. / Inventão como toda a gente, / Inventão como só certas pessoas são, / Inventão como a minha pessoa somente. // À primeira vista pareço diferente / mas à segunda vista vê-se bem que não. / Sou fala-barato – todos os bonecos são. / Sou feito de madeira – como toda a gente. / Sou feito de maneira como todos são, / /por isso pareço tão diferente!”
Há certos veios retóricos ou, mesmo, lógicos que se insinuam: a antífrase, a silepse, uma quase homofonia (é o caso de “madeira/maneira”), os repetidos paralogismos. A partir daqui cria-se um vivo desenvolvimento expressivo de caráter lúdico. Através do que não tem sentido – o nonsense tão explorado por Lewis Carroll em livros como Alice no País das Maravilhas –, encontra-se a verdade, jogando-se muitas vezes com o que se torna contraditório ou se revela, como se dirá a seguir, sob a forma de uma dupla ilusão: “O teatro é como a vida / feito de transformação. / É um ponto de partida… / É um ponto de chegada / duma viagem parada: //deste lado é ilusão / e desse lado ilusão!” Há, pois, um duplo lado – o dos espectadores e o dos personagens – que prolonga o “fingimento” que Fernando Pessoa atribuía à criação poética.
Refira-se ainda como o que se lê nestas 11 peças teatrais se cristaliza num outro sentido que é o do humor. Esta intervenção que é ainda do omnipresente Inventão encontra-se em “Anão Anão & Assim Assim” (que é a dualidade do não e do sim): “Hoje estou sem imaginação / e a imaginação está sem mim! / O melhor é voltar a contar a do Anão Anão / e do irmão gémeo dele Assim Assim… // O Anão Anão era muito pequeno, / o Assim Assim era assim assim… / Não eram bem irmãos, mas eram mais ou menos, / não eram bem gémeos, mas enfim…”
As últimas quatro peças têm uma acentuação diferente. Nela o sonho desempenha um papel importante, representando a indecisão entre a realidade e a ilusão, o eu e o que o cerca, o estranho (que pode ser verdade) e o que é evidente (que pode ser falso). Paralelamente, há uma outra diferença a ter em devida conta: o que nas 11 peças iniciais defluía para o nonsense, para a expressão lúdica, ganha agora uma outra expressividade própria da poesia e que é a ambiguidade. Esta, a ambiguidade, ganha um sentido existencial, uma tonalidade angustiada, por vezes agónica.
O teatro privilegia o diálogo. Numa destas peças, intitulada História do sábio fechado na sua biblioteca, há um narrador – que não dialoga – e vários outros personagens que sustentam esse diálogo teatral. Mas há aí também uma presença que não é sequer um personagem: o tempo. Aqui o sonho é um encontro com o próprio sonho encarnado, o envelhecimento, o diálogo com a morte. No final, pela boca do narrador, o velho sábio “apenas sonhara sem saber que tinha morrido”
O sonho ou o tempo é o rosto do Adivinhão. Eles são a grande metáfora que atravessa este livro sob formas entre si tão diferentes, mas tão sugestivas por anunciarem o que, através do teatro, a poesia também pode ser.