Viveu no coração das palavras o poeta que não queria adiar o amor para outro século. António Ramos Rosa (ARR) amou as palavras, sílaba a sílaba, fonema a fonema, letra a letra, a poesia no nervo de uma existência de versos e desenhos, escritos uns e outros sempre compulsiva e generosamente. Era aliás um homem generoso e amável, com uma fragilidade sempre a pesar-lhe no corpo, tímido, introvertido, distraído, ensimesmado nos seus pensamentos e metido no seu mundo interior.
Uma boa definição para poeta seria para si, segundo disse ao JL em 2001, “aquele que ama as palavras”. E acrescentou: “É através delas que consegue ter uma relação unitiva e harmoniosa com o mundo, com a realidade. O poeta interroga o mundo e aquilo que por natureza pode não ter resposta. Mas a interrogação permanece. É um mistério. E a pergunta é tanto mais essencial e tem tanto mais carácter poético quanto impossível é a resposta”.
Na mesma entrevista ao nosso jornal, que ao correr do tempo dedicou muitas páginas à sua obra e onde teve uma coluna intitulada “A Lira e o Vento”, observava ainda: “O poeta nasce do poema. O poema é trabalhado a partir daquilo que nos é dado. Tenho essa experiência. Muitas vezes, estou deitado e vêm-me à cabeça imagens, palavras, mas tudo é muito confuso. Tenho que me levantar e começar a escrever para clarificar o que estava a sentir”.
Abandonando progressivamente os “atributos”, a sua poesia afirmou-se na incessante busca do “essencial, do ‘elemental'”, como gostava de dizer. Tinha já 34 anos quando publicou o primeiro livro, O Grito Claro, em 1958 e a sua reverberação não deixou mais de se ouvir claramente. Era em rigor uma plaqueta, com 24 páginas, o primeiro número da coleção “Palavra”, dirigida por Casimiro de Brito, que foi, de resto, quem o convenceu a publicar. Desde o início da década de 50 que ARR publicava avulsamente poemas em revistas, e ainda muito jovem, quando se revelou a sua voz poética, escreveu muitas centenas que queimou, por “lucidez” e “descrença” em si próprio, como revelou também ao JL, em 1988.
Nos livros iniciais eram patentes as preocupações social e política, bem como a presença do surrealismo, ‘abrindo’ depois para a Natureza e o mundo, numa viagem cósmica, pela via da linguagem. Em Viagem Através de uma Nebulosa (1959), o segundo livro, indiciava-se desde logo esse caráter único de “poesia cósmica”. Voz Inicial (1961), Ciclo do Cavalo (1975), Volante Verde (1986), Nomes de Ninguém (1997), são alguns dos livros que o consagraram como uma das vozes mais poderosas da poesia portuguesa do século XX.
António Ramos Rosa nasceu em Faro, em Outubro 1924, tendo estudado no liceu da cidade. Uma doença impediu-o de completar os estudos liceais. A insaciável curiosidade e a avidez de leituras levaram-mo, no entanto, a uma formação autodidata contínua. Tinha a paixão da Literatura e da Arte. Entre os poetas, foi José Régio quem primeiro o deslumbrou na poesia portuguesa, seguindo-se os surrealistas, os poetas do Novo Cancioneiro, e depois, num alargar de fronteiras, Carlos Drummond de Andrade, Paul Éluard ou Juan Ramón Jiménez, que de alguma maneira influenciaram a sua poesia.
Trabalhou num escritório comercial, experiência que talvez esteja na origem de um dos seus mais conhecidos poemas, “O Funcionário Cansado”. A sua alma não podia “dançar” com os números do deve e haver, pelo que acabou por deixar esse emprego. Faz parte da sua lenda que certa vez, ao sair do escritório, olhou o sol, o céu azul e achou impossível voltar ao expediente. E não voltou mesmo. Foi então professor e deu explicações de português, francês e inglês. E esse ofício deu-lhe finalmente a “liberdade” para escrever.
E tinha sido precoce a sua veia poética. “Posso dizer que descobri a poesia como qualquer poeta descobre. No entanto, essa descoberta mantém em si um segredo. A poesia é iniciática”, afirmava ao Expresso, em 1988. “Não sei hoje mais; posso saber de outra maneira, mas não sei mais do que sabia quando escrevi o meu primeiro poema”.
Depois da II Guerra Mundial, intensificaram-se as suas atividades de oposição ao salazarismo. Militou no MUD Juvenil, Movimento de Unidade Democrática, e foi preso em 1947, quando foi esperar Maria Lamas, na chegada a Portimão. Passou várias temporadas em Lisboa, onde acabou por se fixar, no início dos anos 60, após o casamento com Agripina Costa Marques, de quem teve uma filha, Maria Filipe.
Faces da mesma paixão pela poesia, ARR traduziu muitos autores, sobretudo franceses, e somou a vertente ensaística e crítica à criação poética. Fundou, dirigiu e colaborou em várias publicações literárias, nomeadamente a Árvore, com João Rui de Sousa e Luís Amaro, entre 1951 e 1954, apreendida depois de quatro números, Cassiopeia, que teve apenas um, pelos mesmos motivos. E, em Faro, em 1958, com Casimiro de Brito, Cadernos do Meio-Dia, que também não foi além de quatro números, por causa da censura. Poesia, Liberdade Livre (1962), A Poesia Moderna e a Interrogação do Real (1979), Incisões Oblíquas (1987) e A Parede Azul (1991), são alguns dos seus ensaios de referência. A sua perspetiva sobre a poesia moderna e contemporânea abriu horizontes a gerações de leitores, tendo ainda organizado antologias de poetas contemporâneos, sendo o responsável pela quarta série das Líricas Portuguesas, da Portugália (a terceira foi organizada por Jorge de Sena).
Dedicou uma vida inteira à escrita, homenageada, reconhecida e distinguida em múltiplas ocasiões, em Portugal e no estrangeiro. Destaque para o Prémio Pessoa, em 1988, e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores, em 89. Mas referência também, entre muitos outros para os prémios da Fundação Hautvilliers, Jean Malrieu (ex-aequo com Roberto Juarroz e Yves Namur), da Associação Internacional de Críticos e do Pen Clube, entre outros. Antes do 25 de Abril, também lhe foi atribuído um prémio do SNI, mas recusou-o, apesar das dificuldades económicas com que sempre viveu, uma espécie de ‘franciscano’ da poesia.
Ao longo de décadas, escreveu e publicou quase uma centena de títulos, mais de três mil poemas, uma produção fértil que não terá deixado de merecer alguns reparos críticos. Mas na referida entrevista ao Expresso, o poeta salientava: “Eu tenho a impressão de que cada livro, embora dentro de uma certa tendência que é a de uma poesia elemental, manifesta uma grande disparidade. Há quem tenha dito que na minha poesia há muita repetição. E eu não tenho medo dessa repetição. Receio mais a disparidade que há entre alguns desses livros e que me dá a impressão de que não são do mesmo autor”. E acrescentava: “Acho que todo o poeta procura a unidade fundamental do ser”.
O Incêndio dos Aspectos, A Pedra Nua, Terrear, O Livro da Ignorância, Acordes, Declives, A Rosa Esquerda, O Aprendiz Secreto são outros dos seus livros de poesia. No ano passado, acrescentou à sua obra mais um precioso volume de pequenos poemas, Em Torno do Imponderável. E a mão por certo muito frágil e insegura, com “taquigrafia”, como gracejava, já hospitalizado, pouco antes da sua morte, escreveria sobre o papel de novo, pela última vez, o seu célebre verso “Estou vivo e escrevo sol”, depois de a filha lho ter murmurado ao ouvido. E seguramente está esse verso inscrito para sempre no “diálogo com o universo”, para usar o nome de um dos seus ensaios e definições de poesia.
António Ramos Rosa morreu no passado dia 23 de Setembro, vítima de pneumonia. Tinha 88 anos. De tanto escrever o coração do poeta que vivia de palavras parou. A sua poesia fica para outros séculos.