Desde que me conheço que ouço, ciclicamente, anunciar a “morte do romance”. A qualquer inovação tecnológica, a qualquer forma “mais moderna” de comunicar uma história, aparecem logo os profetas de um futuro que nunca conhecerão a anunciar que o romance “está pela hora da morte”. Há dois grupos convergentes que nos assombram a leitura: os que entendem que as novas plataformas de produção e/ou difusão de conteúdos (Netflix, HBO, Amazon, Disney) acabarão por matar o romance, porque a este vão buscar, com cor e movimento, os enredos que comunicam com mais presteza e eficácia – o suporte acabaria por se substituir ao género literário; os outros, porventura menos modernos, afirmam que já não há romances como os de antigamente e que, portanto, a leitura de romances deixou de ser interessante. Lembro-me de ouvir Augusto Abelaira, um romancista, afirmar, na sala de redação deste jornal, que já só lia livros de divulgação científica, os únicos que lhe traziam novidade. Isto passou-se há quarenta anos; o romance, entretanto, sobreviveu ao desinteresse do romancista de A cidade das flores.
Vamos por partes: o argumento dos primeiros é o de que, ao ritmo da vida contemporânea e diante das inúmeras solicitações que os meios tecnológicos nos apresentam, o género romance deixou de satisfazer, como entretenimento, a função que tinha ainda no século passado. Partem estes do pressuposto de que meios como aqueles de que dispõem as grandes empresas de distribuição online e formatos como o das séries para o pequeno ecrã são mais adequados à criação e circulação das histórias que os romances costumavam contar. Em relação ao romance, sobretudo o ocidental, europeu e americano, é uma visão absurdamente redutora. Se as duas dezenas de romances de William Faulkner fossem apenas o que os nove filmes adaptados deles nos deram, seriam tão-só melodramas sulistas, uma sucessão de golpes e contragolpes mais ou menos encenados, com direto apelo à compunção fácil e à compaixão ritual, o que tornaria impossível justificar a dimensão universal atingida pelo romancista do Mississípi.
Por isso, os filmes ficam a léguas dos romances. A razão desta discrepância é simples: os romances de Faulkner são interessantes (e importantes) por um conjunto de características que resistem à apropriação e transposição pela linguagem cinematográfica. Neles, não é a história que mais importa, mas o contexto social, as personagens, os conflitos, as paixões, a violência e a crueldade, a decadência e a corrupção moral, o som e a fúria que fazem com que vidas humanas, na sua desgraça, possam ser contadas. É a “selva oscura” da condição humana que se desprende das suas páginas. E é, acima de tudo, a forma como tudo é contado pelo romancista, num discurso que, a partir de O som e a fúria (1929), estilhaça o tempo e a narratividade sequencial que era de norma. Pode ser que isto não tenha atrativo para as grandes massas de consumidores do audiovisual; mas isso não significa que o género literário e o suporte físico mudem de lugar, numa clara inversão daquilo que verdadeiramente interessa numa obra literária.
O segundo grupo de “profetas” da morte do romance é, por assim dizer, mais “historicista”: os romances contemporâneos deixaram de interessar porque se desprenderam do modelo da narrativa oitocentista, verdadeira “idade do ouro” do romance moderno. Em certo sentido, também estes pensam que o essencial do romance é a história que o suporta e que essa fórmula se esgotou com os “grandes romances” do século XIX. Alguma razão de partida têm: de facto, é difícil encontrar a “história” nos romances de Proust, de Joyce, de Virginia Woolf, de Thomas Mann, para já não falar da abolição da linearidade narrativa que era tão “confortável” para o leitor (o que não impede a persistência de romances convencionais como O leopardo de Lampedusa ou O nome da rosa de Umberto Eco; o romance, como o resto, não procede por exclusão, mas por acumulação).
Em contrapartida, estes inovadores (juntamente com Faulkner) distenderam os limites do género até que este, elástico, passou a caraterizar objetos literários claramente mais abrangentes que a tradição romântica e realista. Ao longo do século XX, o romance deitou raízes em territórios limítrofes, sobretudo o ensaio, a biografia, a poesia, a ficção autobiográfica, a escrita de viagens, estendeu-se até aos confins da expressão escrita, ensaiou e experimentou estruturas e técnicas narrativas, debruçou-se sobre abismos interiores que os seus antecessores nem sequer sonhavam (Freud ainda não era conhecido). Converteu-se, por assim dizer, no mensageiro portador da “doença do infinito” (Pietro Citati).
A “novidade” do romance deixou de residir na originalidade do enredo (o tirânico plot), para passar a evidenciar-se na sua capacidade para interrogar o mundo, para levantar questões, para fazer pensar. Esse mecanismo de interrogação é um passo para tentar compreender todo o mundo, uma etapa de um outro conhecimento. Aprendi mais sobre a Espanha do século XX lendo Praça do diamante, de Mercé Rodoreda, Nada, de Carmen Laforet, Rabos de lagartixa, de Juan Marsé, O monarca das sombras, de Javier Cercas, ou Patria, de Fernando Aramburu, do que com um punhado de ensaios que me contaram a “história” do que se passou, mas não me disseram nada sobre as pessoas que a sofreram e as que lhe sobreviveram.
Querem novidade? Ao acaso, leiam, só no nosso século, Lincoln no Bardo, de George Saunders, O retorno, de Dulce Maria Cardoso, O ministério da felicidade suprema, de Arundhati Roy, Uma odisseia, de Daniel Mendelssohn, Era uma vez em Goa, de Paulo Varela Gomes, Cosmópolis, de Don DeLillo, Berta Isla, de Javier Marías, A louca da casa, de Rosa Montero, O meteorologista, de Olivier Rolin, Ordesa, de Manuel Vilas. Leiam – ou tenham a coragem de assumir que deixaram de ter paciência para ler romances. O que é perfeitamente legítimo; mas disso o romance não tem culpa. J